domingo, 31 de dezembro de 2023

Para um feliz 2024, se possível

foto Roberto Anderson

Em alguns dias será um novo ano. Se não déssemos tanta importância à contagem do tempo, talvez essa passagem não fosse tão marcante. Mas, assim somos. A chegada de um ano novo acaba sendo uma oportunidade de avaliar o que passou, de pensar no que pode mudar, e de ter propósitos.

O ano que vai acabando já mostrou alguns problemas que estarão no futuro. A crise climática continuará a extrapolar os debates acadêmicos, extravasando para as ruas na forma de ondas de calor sufocantes, de secas, de chuvas torrenciais que provocam enchentes cada vez mais dramáticas, e de aumento das áreas consideradas de risco. 

No mundo, a guerra deixou de ser fria, tornou-se disseminada, com as potências nucleares enfrentando-se por intermédio de terceiros. Ataques massivos por drones não são mais ficção. As imagens dos bombardeados, das crianças atingidas, dos desabrigados, dos exilados, dos forçados a emigrar nos comove e incomoda. 

Os extremistas de direita estarão à espreita para, na primeira oportunidade, tentar novamente destruir a democracia. A inteligência artificial, apesar de trazer benefícios, também nos fará duvidar do que vemos e ouvimos. Aquela pessoa impoluta poderá ter a sua imagem e voz clonadas, para cometer as maiores barbaridades. O vizinho do lado, ou o seu espectro, poderá lhe induzir a cair num golpe financeiro. 

O mundo parece estar ficando cada vez mais complicado. E todos esses são problemas muito grandes, cujas soluções não estão muito ao alcance de cada um de nós, cidadãos comuns. Mas, há atitudes que podemos tomar como propósitos para o novo ano que, se não resolvem as grandes questões, podem nos fazer um bem danado. Que tal uma pequena lista de ações ao nosso alcance?

Cuidar melhor de si, do que se come, renegar os ultraprocessados e os alimentos regados a agrotóxicos. Gastar mais tempo na cozinha experimentando novas receitas para servir à família e aos amigos. Por falar nestes, lembrar de ligar ou, vá lá, mandar mensagens para saber como estão. E dar um jeito de combinar um encontro, de preferência, vários ao longo do ano. 

Fazer caminhadas ou, se possível, corridas pelo menos duas vezes por semana. Não é muito. Voltar para a academia ou, para quem já lá está, manter-se firme, mesmo que os benefícios nem sempre apareçam no espelho como desejamos. Se a academia for insuportável, escolher nadar, jogar, quem sabe até competir. 

Aprender uma nova língua, que pode ser o mandarim, para melhor entender a nova potência do século XXI. Contrariando o senso comum, sempre é tempo de aprender. Mesmo que o aprendizado seja lento, a cabeça estará funcionando, a caixinha da memória estará sendo desafiada a expandir-se.

Lembrar que é o ano de eleger o prefeito ou a prefeita e os vereadores, aqueles que são responsáveis pela qualidade de vida nas cidades, ou a falta dela. Procurar entender quem são os candidatos, ouvir suas propostas e saber reconhecer ali o que são promessas vãs e o que merece credibilidade. Se possível, seria desejável escolher um bom candidato, melhor ainda se for uma candidata, com antecedência e, por que não, conseguir alguns votos para quem merecer a sua confiança. 

Plantar uma árvore (essa é velha). Mas se não for possível fazer isso, ligar para a Prefeitura, procurar na Internet o órgão responsável por plantios, e pedir, reclamar, exigir que seja plantada uma bela muda naquele espaço vazio na calçada, que os urbanistas chamam de golas. Melhor ainda, quando for fazer aquela caminhada ou corrida da promessa lá de cima, anotar as golas vazias do seu bairro e repassar os endereços para a prefeitura. 

Ler mais nas folhas de papel dos livros, ver mais filmes do que novelas, ir a mais festas do que a cultos, ir mais vezes ao teatro, porque lá os atores e os bailarinos esperam para apresentar um evento único, que não será igual ao do dia que passou, nem aos vindouros. Viajar mais, se possível, com baixa pegada de carbono. 

Namorar, se der, amar. Reencantar-se com pessoas e atividades que andavam parecendo enfadonhas. Abraçar os filhos, os irmãos, os pais, os avós e os amigos. Querer mais vida, mais anos novos, mais surpresas agradáveis, mesmo sabendo que as desagradáveis também virão. Ter coragem para seguir na corrente do tempo, sempre à frente, sem parar. Feliz Ano Novo. 

Artigo publicado em 28 de dezembro de 2023 no Diário do Rio.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A Usina dos italianos de Porto Real

 

Porto Real é uma cidade do Sul fluminense, com aproximadamente 20 mil habitantes, que sedia a fábrica da Peugeot Citroën, atual Stellantis. Até 1995, era parte de Resende. Mas, lá no passado, foi a localidade de Minhocal. Por ter tido uma porção de terra doada à coroa, na qual havia um desembarcadouro às margens do rio Paraíba do Sul, tornou-se Porto Real. 

No final do século XIX, ela recebeu um grupo de colonos italianos que, supostamente, deveriam ir para Santa Catarina. Mas eles teriam preferido ficar por ali mesmo, já que gostaram do lugar. Esses colonos trabalharam duro, plantaram cana-de-açúcar e, para beneficiar essa produção, foi inaugurada em 1889 uma bela edificação projetada por arquitetos franceses, que veio a se chamar Açucareira Porto Real. Além da importância afetiva por ser parte importante da história local, o edifício é um dos cartões postais da cidade. É uma bela edificação industrial, em alvenaria de tijolos aparentes, com um corpo mais alto, em cuja fachada estão incrustados um relógio e um oratório. 

A antiga usina assemelha-se em tipologia a outros edifícios industriais preservados, como as antigas fábricas de tecidos Bangu, o Moinho Fluminense e a Companhia Têxtil Brasil Industrial, esta última em Paracambi. Inexplicavelmente, a antiga Usina, depois fábrica da Coca-Cola, até hoje não é tombada, nem tem qualquer proteção legal. Mas, isso não lhe retira importância e a necessidade de ser preservada. Já faz muito tempo que os edifícios industriais do século XIX, e mesmo do século XX, entraram no radar dos órgãos de Patrimônio, que vêm buscando preservar esse período da história humana. 

Em maio deste ano, parte da fachada desabou, um acontecimento triste e deplorável, por evidenciar falta de cuidado. A parte desabada corresponde a uns 15% da edificação, portanto, a sua recuperação é perfeitamente possível e desejável. No entanto, a absurda solução encontrada pela Coca-Cola foi encomendar um projeto que parta da demolição total do que restou e reconstrua a edificação como um pastiche do prédio histórico existente. Sim, é isso mesmo, querem demolir o prédio histórico para reconstruí-lo como cenário. 

Após esta ação danosa, criminosa mesmo, de demolição do que ainda resta de pé se concretizar, a empresa planeja reconstruir a volumetria do edifício utilizando alvenaria de bloco de concreto, com pilares pré-moldados. Posteriormente, toda fachada da nova edificação seria revestida com tijolinhos cerâmicos, similares aos tijolinhos maciços existentes na estrutura atual, que não são apenas um revestimento. As janelas e as portas da nova edificação teriam as mesmas medidas das atuais, mas seriam fabricadas em alumínio.

Quem imaginaria que a Coca-Cola promoveria algo fake, não é mesmo? Essa solução é inadmissível, e contraria todos os cânones de gestão de bens culturais. O Ministério Público deveria olhar esse caso de destruição do Patrimônio de Porto Real e impedir que a demolição do que ainda existe se concretize. Os cidadãos de Porto Real deveriam se indignar com a destruição da sua história. E o órgão de Patrimônio estadual, o Inepac, deveria agir, antes que seja tarde demais. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 21 de dezembro de 2023. 

 

sábado, 16 de dezembro de 2023

Nerds na Portuária

Apesar de suas políticas urbanas que ameaçam a paisagem carioca e a qualidade de vida dos cidadãos, o prefeito do Rio acertou ao trazer a graduação em matemática do Instituto de Matemática Pura e Aplicada-IMPA para a Área Portuária. O IMPA Tech funcionará num galpão da Prefeitura, dividindo espaço com startups e empresas de tecnologia, na avenida Professor Pereira Reis. Apesar de estar devendo mais explicações à sua vizinhança no Horto sobre as obras de edificações ali na encosta florestada, o IMPA fez um golaço ao criar essa graduação.

A Área Portuária, mesmo com todos os investimentos ali já realizados, não tem recebido atividades que gerem movimento e atraiam público. Isso se deve ao modelo de urbanização trazido pelo projeto Porto Maravilha. Ele é baseado em índices de aproveitamento dos terrenos e possibilidade de altas edificações, sem um plano de massa que imagine o resultado final, sem reserva de terrenos para habitação, sem espaços para o pequeno comércio, e voltado para um público de mais alta renda. Público este que, até o momento, tem desdenhado da área, continuando apegado à Zona Sul e à Barra.

Financiada pelo governo federal, a futura graduação do IMPA oferecerá até 100 vagas por ano para alunos selecionados em todo o país, buscando trazer para o Rio aqueles que demonstrarem vocação e aptidão para o raciocínio matemático. Eles receberão uma ajuda de custo e alojamento providenciado pela Prefeitura, em apartamentos que a mesma adquirirá na área. Apesar do folclore de terem características de pessoas mais absortas no seu mundo de equações, a presença desses alunos vivendo e estudando no coração da Área Portuária terá uma grande capacidade de vitalizá-la, bem mais do que os empreendimentos voltados para escritórios ali já realizados. 

A criação do curso do IMPA tem também a característica de ir ao encontro de uma das grandes vocações da cidade, a de ser um polo de produção de saber, aberto a estudantes e a pesquisadores de todo o país. Existe no Rio outra instituição de ensino com um papel semelhante ao que terá o IMPA Tech: o Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil do Senai, o Senai Cetiqt. Ele tem sedes na Cidade Universitária e na Barra da Tijuca e também recebe estudantes de várias partes do país, oferecendo alojamentos para os que vêm de fora. 

O Senai Cetiqt é o maior centro de produção de conhecimento na área têxtil e de confecção, incluindo a moda, e na área química. E está no Rio de Janeiro. As universidades públicas de excelência aqui situadas também têm essa capacidade de atrair para o Rio estudantes de outros lugares. Numa outra área do saber, mas não menos importante, a Escola Nacional de Circo, na Praça da Bandeira, é também uma instituição nacional, que recebe alunos de outros estados. 

Juntamente com o poder de atração das atividades culturais que aqui acontecem, e não se pode perder de vista o papel da Rede Globo nesse aspecto, todas essas instituições são responsáveis por manter o Rio como cidade de todos os brasileiros. A presença, mesmo que temporária, desses recém-chegados evita que a cidade caia num provincianismo, próprio de locais pouco abertos ao diferente. O Rio é lindo e os cariocas são ótimos. Apesar de a cidade estar meio perdida, o seu potencial é imenso. Não é tão difícil encontrar que caminhos seguir. 

Artigo publicado em 14 de dezembro de 2023 no Diário do Rio.

sábado, 9 de dezembro de 2023

A cura

Robert Smith

Era o início da década de 1980. O trabalho de garçom, num restaurante perto da Washington Square, era um dos vários bicos que a vida de artista sem recursos em Nova York oferecia. O lugar era bonito, tinha paredes decoradas com grandes espelhos barrocamente emoldurados. O que mais chamava a atenção era o bar, com suas estantes torneadas, de novo os espelhos, dezenas de taças penduradas, e a enorme variedade de bebidas expostas. 

O restaurante, que já não existe, era bem frequentado. Muitas pessoas que iam assistir peças no Public Theater ali perto, antes jantavam no Garvin's. Foi o que fez Jackie Onassis certa noite, gerando uma ciranda de garçons passando perto da sua mesa. Numa tarde de salão vazio, lá também esteve Rod Stewart. Desacompanhado, tomou com calma a sua bebida, sem ser importunado por ninguém. 

A maioria dos garçons era de jovens. Alguns estudavam teatro, outros dança, apesar de também haver imigrantes em busca do sonho americano. O uniforme era calça preta, camisa de smoking branca, gravata borboleta vinho e sapato social. Mas, havia tolerância para tênis preto, se fosse de couro. 

A formalidade pretensiosa do Garvin's era o oposto da vida de cada um dos que lá trabalhavam. Nos momentos mais calmos, as conversas giravam sobre os projetos de vida, notícias de suas casas distantes (ninguém em Nova York parece ser de lá) e pequenas gozações com a cara de cada um. O sotaque dos estrangeiros era um prato cheio para isso.

Era o tempo em que a AIDS crescia assustadoramente e pouco ainda se sabia sobre ela. Todo mundo tinha algum amigo ou conhecido tocado pela doença e isso desestabilizava, gerava medo. Eram também os tempos dos governos reacionários de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, confirmando que sim, o sonho havia acabado. Apesar de tudo, o mundo pulsava com a sensação de que a vida estava por um triz. Tudo mudava, e não se sabia bem para onde ia. 

Foi num momento de preparação do salão para o jantar que o barman colocou pra tocar uma fita do The Cure. Era uma batida forte e com muita melodia, a voz angustiada e sufocada de Robert Smith exalando revolta. As letras absurdamente sombrias e desesperançadas eram a cara do momento. Boys don't cry. Na capa, estava estampado o visual gótico. Identificação e paixão imediatas. Guardado o nome na memória, na primeira possibilidade a fita cassete foi devidamente comprada, passando a ser ouvida over and over. 

Os perrengues da vida num país estrangeiro, os dias de frio, o sair para o trabalho com o dia escurecendo, porque é assim no inverno, os desencontros amorosos, mas também as conquistas, as descobertas, os progressos, tudo podia ser pontuado pelo romantismo estranho, pela melancolia ou o niilismo do The Cure. 

De volta ao Brasil, apesar da claridade ambiente, os tons sombrios da banda continuavam a fazer sentido. Era como se o batom borrado agora o fosse pela ação do sol e do suor. Tentar rir disso, it's Friday, I'm in love seguiu batendo forte. A fita cassete ainda existe, mas já não há mais onde tocá-la.

Agora, em 2023, a Thatcher se foi, o Reagan idem, o mundo segue em crise, mas o The Cure continua. E fez um lindo show em São Paulo.

Artigo publicado em 07 de dezembro de 2023 no Diário do Rio.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A Traviata


Enfim, chegou o dia de assistir à ópera. Mais do que isso, vinte e dois anos depois, enfim, La Traviata volta ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Muito tempo de ausência de uma obra desse porte numa cidade que se acredita um polo cultural. Longe vão os tempos de bonança da Fundação Teatro Municipal, quando o casal de governadores da terra do chuvisco concordava em dotá-la com um orçamento até maior do que o da própria Secretaria de Cultura. Coisas curiosas aconteciam então. 

Para chegar ao Municipal, civilizadamente, boa parte do público opta por utilizar o metrô. Infelizmente, essa preferência não é recompensada pela administração desse sistema de transporte, que fecha a entrada mais próxima ao teatro nos fins de semana. Isso obriga senhoras e senhores, em seus melhores trajes, a se deslocarem pela praça mal iluminada, com aspecto de abandono. Nesta temporada da Traviata dois cantores, que haviam acabado de participar do espetáculo, foram agredidos por assaltantes na Cinelândia.

No último fim de semana, a bela chegada ao teatro esteve obliterada por uma enorme tenda dedicada a atender pessoas que desejavam limpar os seus nomes, renegociando dívidas. Nada contra tal atividade, mas somente gestores incultos permitem esse tipo de equipamento gigante na vizinhança do principal conjunto de monumentos da cidade: o próprio teatro, a Câmara de Vereadores, a Biblioteca Nacional e o Museu de Belas Artes. O que dizem os órgãos de Patrimônio?

Apesar de ter negada a visão, a partir da praça, dos vitrais iluminados do teatro, das suas colunas coríntias, dos seus ornatos e da imponente águia dourada, subir a escadaria externa do Municipal é sempre uma grande emoção. Ali estão os grupos de senhoras vindas em vans que as retiram do provável isolamento que advém com a idade. Ali estão representantes da elite econômica carioca, tanto os que genuinamente apreciam um bom espetáculo, quanto aqueles que ascenderam mais recentemente e sabem o quanto pega bem assistir a uma ópera. 

Dispersos pela escadaria também estão os amantes do canto lírico que necessitam ver ao vivo as óperas que tanto amam, da mesma forma como necessitam do ar que respiram. E também estão os artistas, e outras pessoas sem recursos, e sem acessos a convites, desejosos que um anjo apareça e lhes ofereça um ingresso que tenha sobrado. Lugar tão familiar no passado...

Adentrar o Theatro é uma experiência de maravilhamento. Mármores e pedras de tons variados, bronzes, esculturas, ornatos folheados a ouro, tudo muito rico, tudo muito nobre, a mais bela joia da cidade. A subida da escadaria central, com sua finalização bipartida, seus corrimãos de ônix, e o grande vão acima, terminado num vitral ladeado por pinturas, é sempre um ato que confere charme e grandeza ao mais simples dos mortais. Na era das redes sociais, essa subida se tornou incontornável, assim como a devida parada para fotos. 

O que os frequentadores justamente maravilhados não percebem são as microfissuras nos mármores das paredes e dos pisos, resultado provável da trepidação provocada pela circulação do metrô e da antiga situação de tráfego intenso de ônibus na lateral do teatro. Afinal, as fundações dessa magnífica edificação são toras de madeira de lei, submersas no lençol freático da região. Essa trepidação, e a movimentação do edifício, já causaram, muitos anos atrás, a queda da balaustrada do foyer. Tudo agora restaurado, não há motivos para preocupação, não há riscos iminentes, só "sinais de expressão" de uma longa existência. 

Se o espectador foi curioso, antes de entrar na sala de espetáculos, terá dado uma circulada pelo interior do teatro. E terá se deparado com o belíssimo foyer, onde a abóbada de berço e os tímpanos são decorados com pinturas magníficas de Eliseu Visconti. A pintura principal é a representação da música e utiliza técnicas de pontilhismo.

Se desceu a escada certa, terá encontrado o Salão Assyrio. A fantasia palaciana europeia agora abre espaço para um misto de referências à Pérsia, à Babilônia e à Assyria. Estão lá arqueiros, leões, os kerubs, que são seres alados, e fontes com Gilgamesh e o imperador Dario, tudo em cerâmica esmaltada, executada por finíssimos artesãos do passado. Uma pena que parte do teto, no lugar de ter a pintura decorativa recomposta, recebeu apenas um adesivo fotográfico na última restauração, a de 2008-2009. 

Antes do início da função, e devidamente sentado, se possível nos assentos privilegiados da plateia e do balcão nobre, o melhor a fazer é observar as belezas da sala de espetáculos. À frente, o belo arco dourado que contorna a boca de cena, com seus medalhões e laços contendo feixes canelados. Na lateral, antes da boca de cena, estão os camarotes da presidência da República e do governador. Não têm bom ângulo de visão, mas estão em locais privilegiados para que os dignitários sejam vistos. Abaixo deles, os camarotes que se debruçam sobre o fosso da orquestra. Na última restauração foram cortados para dar mais espaço à orquestra, mas não tiveram seus ornatos recompostos.

Acima, a pintura também de Visconti para o friso do proscênio, datada de 1936, quando a boca de cena original foi alargada. Por trás da pintura que decora o proscênio, há outra escondida, do mesmo artista, feita para a boca de cena original, apenas redescoberta na última restauração. No mesmo momento em que ocorreu o alargamento da boca de cena, a estrutura interna do teatro, em pilaretes metálicos, foi substituída por outra em concreto armado. Vigas gigantes de concreto agora passam escondidas por cima do plafond da sala de espetáculos, delicadamente decorado com a pintura As Horas, de 1908, do mesmo Visconti. 

Já toca o terceiro sinal, o espetáculo vai começar. A luz da sala se apaga, os músicos dão a última afinada nos instrumentos, o maestro, sob aplausos, assume o seu lugar no fosso da orquestra, e soam os primeiros acordes. A produção está muito bem cuidada, com o coro, o ballet e a orquestra em ótima forma. A soprano Ludmila Bauerfeldt, no papel de Violetta Valéry, encanta. Os figurinos e as coreografias idem.

No segundo ato há uma certa estranheza com a simples cortina com plantas trepadeiras fazendo as vezes da casa de campo do casal de enamorados. Bem distante do suntuoso cenário da última produção, quando havia um belo jardim na casa de Violetta. Foi por ele que o então médico de plantão no palco do teatro se equivocou de caminho, e adentrou a cena. Curiosidades de um palco centenário.

Também a inversão temporal do último ato, quando Violetta é apresentada como uma visão fantasmagórica, já falecida, cria um certo estranhamento em relação ao que é cantado, onde ela ainda tem um sopro de apego à vida. Talvez, uma concessão do diretor ao expressionismo alemão, assim como a dançarina de braços desnudos que aparece no segundo ato, na cena em que a protagonista é destratada por Alfredo. 

Ao final, a plateia oferece seus aplausos calorosos e merecidos aos artistas. Num ato incomum, são chamados ao palco alguns trabalhadores dos bastidores. Lá estão, entre outros, Leila, a chefe das camareiras e Divina, a responsável pelas perucas das personagens. É justo, sem eles não há espetáculo. E sem mais óperas, concertos e ballets o Rio é menos Rio. Obrigado Theatro Municipal, queremos mais.

Artigo publicado em 30 de novembro de 2023 no Diário do Rio.