quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O militante está nas ruas

Campanha eleitoral na Central do Brasil - foto Roberto Anderson

O cara pede um panfleto para em seguida, com teatralidade, amassá-lo diante do militante que o havia entregado. Grunhindo o nome do presidente, joga o panfleto com a propaganda do opositor no chão. Não é a toda hora, mas acontece. 

Uma moça pede o adesivo do candidato de oposição. Fica feliz em recebê-lo, mas pergunta se haverá a possibilidade de apanhar de alguém na rua, por usá-lo. É uma novidade, o medo de algumas pessoas de demonstrar a sua preferência política, já que o ambiente está tenso, com inúmeros casos de violência por questões políticas. 

Uma senhora idosa, frágil, pede o panfleto do candidato a senador. Diz votar nele já há muitas eleições. Ele, que tem cabelos brancos como os dela. Perguntada se deseja uma sugestão para deputado, diz que não precisa, que já escolheu. Antes de ser indagada sobre quem conquistou sua preferência, informa com olhar matreiro: é a moça do MST. 

Apesar de todas as ameaças, das promessas de não respeito ao resultado das eleições e de um sem número de inverdades sobre as urnas eletrônicas, a campanha eleitoral segue adiante, os cabos eleitorais, uns pagos, outros militantes, se esforçam para convencer as pessoas. As bandeiras dos candidatos são agitadas e os panfletos voam para as mãos dos eleitores. 

A escolha de onde panfletar, instintivamente, segue os ensinamentos do urbanista Kevin Lynch: buscar os pontos nodais. Segundo o autor, estes são pontos de grande intensidade de atividades, de afluência de pessoas, de confluência de vias. Por isso, entradas de estações de metrô, de trens ou de barcas, esquinas movimentadas e ruas comerciais são os pontos preferidos pelas campanhas políticas. 

Fazer campanha na Central do Brasil é para os fortes. Em meio a vendedores ambulantes nas calçadas, alguns com suas caixinhas de som que anunciam os produtos à venda, carros de som com jingles estridentes de candidatos, e um mar de gente apressada voltando para casa, cabos eleitorais disputam a atenção dos eleitores. Muitos apenas balançam bandeiras de candidatos que lhes pagam as diárias, outros entregam seus panfletos. 

O olhar do militante precisa estar atento à multidão que passa, buscando identificar aquelas pessoas que esboçam a intenção de aceitar o panfleto. Tudo é muito rápido, e é preciso fazer o papel encontrar a mão que timidamente se presta a aceitá-lo. Às vezes o gesto de aceitação demora a acontecer e o panfleto não chega a tempo à mão que iria recebê-lo. Algumas pessoas, já de longe, demonstram que não querem panfletos. Pode ser um dedinho balançando um não, ou uma cara enfezada. Outras ignoram o militante, e isso dói. Bom mesmo é quando o passante abre um sorriso e diz que conhece e vota no candidato, aceitando a propaganda e pedindo adesivos. O militante vai ao paraíso. 

Boa parte dos passantes são indiferentes, mas muitos também aceitam de bom grado as sugestões de candidatos. Eleições para o parlamento brasileiro são um campo fértil para qualquer candidato, pois os eleitores não costumam saber quem está concorrendo, o que aquele deputado em que um dia votaram já fez, e o que significam as diversas siglas que disputam a sua preferência. A maioria vai mesmo deixar para escolher na última hora, por critérios insondáveis. 

Já para presidente a coisa muda um pouco de figura. São bem conhecidos os principais contendores e os eleitores têm opiniões firmes sobre os mesmos. Algumas pessoas aproveitam a presença das campanhas para gritar os nomes de seus preferidos. Devem pensar que assim desafiam o ambiente que se instalou, contrário ao debate. Outros exibem sorridentes o sinal com a mão que representa a primeira letra do nome do seu candidato. É uma festa, a democracia. 

À medida que o tempo passa, vai se observando nas ruas que os adesivos são usados com mais convicção por militantes e por aqueles que já optaram. Estando convictos, buscam demonstrá-lo para, quem sabe, conquistar mais adeptos. Quem cruza com outra pessoa que também porta adesivos do seu candidato sorri, sente cumplicidade, e que a vitória é possível e próxima. 

Com o tempo, o desafio de conseguir quem aceite um panfleto vai ficando mais difícil, já que boa parte da população já foi abordada dezenas de vezes. É a hora de centrar fogo nos santinhos, aqueles cartões mais simples, sem textos, que trazem os números dos candidatos. A estratégia é convencer o eleitor a levar a colinha com os números dos seus votos para o local de votação. Se o nome do candidato à presidência já está escolhido, não custa levar de contrabando o número de um senador, de um deputado. Que tal aquela atriz, que já foi a escrava? Que tal o do colete? 

As ameaças ao processo eleitoral foram muitas, a mensagem subliminar para não se envolver, com risco de se machucar, foi forte. Os acontecimentos violentos, com mortes de adversários, foram reais. Mas o povo brasileiro é resiliente. Apesar de toda a confusão espalhada, ele traz convicções arraigadas sobre a necessidade de democracia. Os eleitores, mesmo aqueles com menos estudos, sabem como encontrar os representantes que defendem os seus direitos. Essa é a beleza da democracia que, se não for tolhida, permite que a população decida os seus destinos em paz.

artigo publicado no Diário do Rio em 22 de setembro de 2022.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Reis e rainhas do Rio

Barril 1800 na esquina da Rua Rainha Elizabeth com Avenida Vieira Souto
Neste momento, em que o mundo acompanha os funerais da rainha britânica, e a ascensão de um novo rei, vale a pena lembrar algumas cabeças coroadas que dão nomes a ruas do Rio de Janeiro. Mas, não só logradouros públicos as homenageiam. Num país que já teve um rei residente e dois imperadores, somos fissurados em realezas. Padarias, bares, botecos, galegos, oficinas e toda sorte de estabelecimentos cariocas trazem nomes reais.

A Avenida Rainha Elizabeth, em Ipanema, liga a praia de Copacabana à praia de Ipanema, um percurso realmente nobre. Ela conecta a princesinha do mar aos domínios da garota de Ipanema. Num passado nem tão distante esse encontro com a praia era marcado pelo Barril 1800, bar que ostentava um barril na fachada e a cauda de um avião da Varig na cobertura.     

Não é uma via muito larga, com apenas três faixas de trânsito, e sentido único. Quase inteiramente reedificada, a avenida é ocupada por edifícios de épocas distintas, entre eles edifícios modernistas sobre pilotis, e edifícios daqueles que têm uma lâmina alta, longe dos pedestres, sobre embasamento para estacionamento. São exemplares do mal que a legislação que passou a exigir um grande número de vagas de automóveis pode fazer à cidade. 

 

No entanto, essa não é a nossa Elizabeth, a mais longeva rainha no seu posto. Na verdade, a rua homenageia a Elizabeth da Bélgica que, com o seu esposo, o Rei Alberto I, visitou o Brasil em 1920. E que aqui não ganhou nome de rua. Dessa visita ficou a escada de 117 degraus talhada na rocha do Pico da Tijuca, com corrimão de correntes, para facilitar a subida do rei. Mas, detalhe que as autoridades brasileiras desconheciam, o rei era alpinista, esporte que acabou levando à sua morte. É, talvez a escadinha fosse necessária...

 

Outra rainha entre nós é a Guilhermina, ali no Leblon. Uma rainha holandesa, cujos antepassados reinaram sobre as terras da Rainha Elizabeth, a do Posto 6. Não é curiosa essa predominância da realeza feminina, da mesma região, na nomenclatura de nossas ruas? Guilhermina também se encontra em localização privilegiada, conectando a praia do Leblon à Rua Visconde de Albuquerque. Ela está próxima a três generais, Artigas, Venâncio Flores e Urquiza, dois uruguaios e um argentino, muito envolvidos em problemas da América Latina, mas que certamente seriam galantes com a rainha.

 

Reis têm menos prestígio para nomear logradouros públicos do Rio, apesar de nomearem um sem número de estabelecimentos comerciais, indo do mate aos celulares, passando por casas de sucos e de quibes. Dom João III, filho de Dom Manuel, nomeia uma rua de apenas uma quadra em Olaria. E nada mais.

 

Dois príncipes são agraciados com nomes de ruas na cidade: o Príncipe da Beira, em Del Castilho, e o Príncipe Regente, o futuro Dom João VI, em Paquetá. Em igual número, duas princesas dão nome às nossas ruas: a Princesa Isabel, com uma larga avenida em Copacabana, e a Princesa Januária, com uma pequena rua no Flamengo. Se a princesa Isabel é popular, a Princesa Januária, segunda filha de Dom Pedro I, é menos conhecida. Mas ela seria imperatriz do Brasil, caso Pedro II não sobrevivesse antes de ter filhos. As duas perderam a chance de reinarem.

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O Imperador Pedro II nomeia a mais bela avenida de São Cristóvão e uma rua em Santa Cruz. Já seu pai, nomeia uma pequena rua junto à Praça Tiradentes, que homenageia o herói condenado à morte pela avó daquele imperador. É nessa praça, do enforcado, que se encontra o monumento em homenagem ao neto da rainha algoz. Confusões da construção da mitologia histórica brasileira.

 

A praça Tiradentes ainda separa a rua do primeiro Imperador da rua de sua primeira esposa, a Imperatriz Leopoldina, figura de grande proeminência nos acontecimentos da independência brasileira. Por falar em Imperatriz, duas ruas foram nomeadas em homenagem a esse título, a rua Imperatriz, na Maré, e a rua da Imperatriz, em Realengo. Seriam imperatrizes do samba? Escolas de Samba são mais pródigas com a realeza, como a Império Serrano, a Império da Tijuca, a Imperatriz Leopoldinense e a Lins Imperial.

 

Cinco viscondes, seis marqueses e uma marquesa, seis condes e uma condessa completam a lista de nobres brasileiros homenageados nas ruas cariocas. Nenhum rei do Congo, nenhum rei mago, ou rei momo foi lembrado. E, apesar de ter reinado por 70 anos, a Rainha Elizabeth II, a do Reino Unido, também não está em nossas ruas. Ela que lançou a pedra fundamental da ponte que segue homenageando um ditador.


artigo publicado no Diário do Rio em 15 de setembro de 2022

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Revolução solar

Projeto Revolusolar no Morro da Babilônia - Rio

A crise climática já é uma realidade. Esta é uma afirmação que até os negacionistas têm dificuldades em refutar. A situação atual do Paquistão, em que um terço do país se encontra debaixo d’água, é um exemplo dos riscos a que diversos países estão sujeitos. Uma característica da crise é a ocorrência de eventos extremos, seja na forma de chuvas e tempestades além do usual, seja a ocorrência de secas, como a que atualmente castiga a China. Infelizmente, nos últimos anos o Brasil passou a contribuir fortemente para essa crise, ao incendiar a Floresta Amazônica.  

Uma das formas de combater o aquecimento global é a transição para uma economia descarbonizada, que não mais lance na atmosfera gases que provocam o efeito estufa. Por essa razão, é fundamental a busca pela ampliação do uso de energias renováveis, entre elas a solar.     

Além de ser uma fonte renovável, a energia solar não tem custos na sua origem, já que, até o momento, a luz solar é de todos. No entanto, a captação dessa energia exige equipamentos que não são facilmente acessíveis por famílias de baixa renda. A Revolusolar, associação sem fins lucrativos, formada em 2015 pela união dos esforços de lideranças da comunidade da Babilônia com empreendedores sociais de fora da favela, se propõe a levar energia solar a comunidades do Rio de Janeiro. É uma iniciativa interessantíssima, e revolucionária, como o seu nome indica. É a construção da sustentabilidade ambiental na prática. 

Os primeiros imóveis a receberem as placas de captação de energia solar do projeto foram dois estabelecimentos comerciais situados nas favelas Babilônia-Chapéu Mangueira. Nesse início foi usado um financiamento da AgeRio, que diluiu os custos no tempo. Em seguida, foi feita a instalação numa escola comunitária local, financiada através de captação num fundo sócio-ambiental. A instalação dos equipamentos foi feita sem custos para a escola, que passou a ter uma economia da ordem de milhares de reais por ano. O projeto ainda capacita moradores, para que eles instalem as placas e façam a sua manutenção, o que gera empregos locais. Aliado a isso, o projeto realiza oficinas com crianças para sensibilizá-las para as questões da sustentabilidade e da energia renovável.

Nessas comunidades, onde o projeto teve início, verificou-se que, ao contrário do que comumente se acredita, a maioria da população paga pela energia. E paga caro, já que a porcentagem do seu orçamento gasta com energia é maior do que em residências de maior poder aquisitivo. A cobrança da energia tradicional é feita por uma estimativa de consumo, através da divisão do consumo total da comunidade pelas unidades conectadas. Se uma família se ausenta, a cobrança ocorre da mesma forma. Além disso, no morro a energia costuma cair com mais frequência do que em outras áreas. E quando cai, o reparo tarda mais a acontecer, uma demora que pode ser de dias. Tais circunstâncias tornaram a possibilidade de uso da energia solar bastante atrativa.

Outro aspecto a ser ressaltado é o progressivo barateamento dos equipamentos de energia solar, o que, a médio prazo, a torna competitiva. Na última década, a tarifa de energia residencial teve um aumento de 105%, enquanto os custos dos equipamentos de energia solar tiveram uma queda de 85%. Nesse quadro de aumento do valor da energia tradicional e queda do valor da energia solar é que se encontra a oportunidade de popularizar o seu uso.

Com o apoio de duas empresas chinesas, fabricantes de equipamentos de energia solar, a Revolusolar deu início também a um projeto piloto de cooperativa para a geração compartilhada de energia solar. É a primeira cooperativa de energia solar em favelas no Brasil. Os equipamentos ficam centralizados no telhado da sede da associação de moradores, imóvel com mais condições de suportá-los. A energia gerada propicia créditos, que são apropriados cooperativamente pelas 34 famílias atualmente envolvidas. Esses créditos significam uma economia de cerca de 40% nas contas de luz das mesmas, economia essa que, em parte, é utilizada para remunerar os trabalhadores locais do projeto e a sua expansão. A meta é alcançar 60 famílias ainda em 2022.

O desenvolvimento do projeto para mais áreas da Babilônia-Chapéu Mangueira, bem como para outras comunidades, traz a possibilidade de, a longo prazo, as favelas não só gerarem toda a energia que consomem, como também gerarem excedentes que poderão ser comercializados externamente. Assim, a energia solar permitiria não só a ampliação de atividades econômicas nas comunidades, como também uma possível renda extra com a venda de excedentes.

Mais recentemente, a Revolusolar expandiu sua atuação para duas novas áreas: o Circo Crescer e Viver, na Cidade Nova, e uma comunidade indígena da Amazônia. Nesses dois locais está sendo repetido o tripé de ações do projeto, constituído pela instalação da energia solar, a capacitação de moradores para realizarem a instalação e manutenção, e oficinas de educação ambiental com crianças. Na Cidade Nova e no Estácio, há a ambição de criar os primeiros “bairros solares” do Brasil, com a instalação de placas em condomínios populares e equipamentos de cultura, em parceria com a Prefeitura.  

O uso da energia solar, apesar de ainda pouco desenvolvido no Brasil, tem enormes possibilidades de crescimento. Segundo Eduardo Ávila, economista diretor executivo da Revolusolar, as condições de insolação aqui são excepcionais, o que inclui o Rio de Janeiro. O estado com menor potencial de insolação, Santa Catarina, recebe 40% mais insolação do que a Alemanha, líder mundial na área. Além disso, as maiores reservas mundiais de quartzo, mineral utilizado na fabricação das placas solares, estão no Brasil.

O dinamismo e inventividade de uma associação como a Revolusolar é fundamental para se dar início ao processo de transição energética que precisamos fazer. Iniciativas semelhantes vêm ocorrendo em outras cidades do Brasil. Mas a sua capacidade de ação é limitada pela carência de recursos. O poder público poderia ter um papel importante no fomento a essas ações. Os próximos governantes a serem eleitos precisam ser sensibilizados para a urgência da crise climática e da ação dos governos para a transição energética.

artigo publicado no Diário do Rio em 02 de setembro de 2022.