segunda-feira, 25 de setembro de 2023

O mundo extremo

Os ventos se tornaram fortes e violentos como nunca. As nuvens se avolumaram. Encorpadas, enroladas aos ventos em furacão, escureceram o dia e despejaram a tempestade sobre a terra. Em Derna, na Líbia, caiu água como torrente sem fim, quebrando as resistências das barragens já gastas do rio. Lama, carros, galhos, telhados partidos, móveis, corpos, enrolados na mesma torrente, correram em direção ao mar, tudo sendo arrastado, a cidade se desfazendo. 

O mundo se tornou um lugar perigoso. Um perigo aleatório, que existe, mas não se sabe quando virá. A destruição pode vir após lindos dias de sol. De repente, tudo pode mudar, como se um castigo divino caísse sobre nossas cabeças. Se não vêm em forma de tempestades, as mudanças climáticas se manifestam de formas estranhas, como o "domo quente" que nesta semana superaquece o Brasil. As previsões de um futuro catastrófico viraram presente. 

Mesmo quem jamais tenha chegado perto de uma chave de ignição de um automóvel, mesmo quem jamais tenha tido eletricidade, está sujeito aos rigores dos novos tempos. O indígena na floresta, o aborígene na Austrália, a tribo na savana africana, eles não sabem que o mundo está para desabar sobre suas cabeças. Secas acontecerão, rios desaparecerão, o fogo tomará a mata, fogo nas casas, fogo nas estradas. Chuvas intensas, enchentes, dilúvios virão. O homem da cidade, preso a seus afazeres, está distraído da tormenta que se aproxima. 

Gaia cospe de volta toda a fumaça que lhe empurraram céus adentro, toda a fuligem que os homens produziram. Gaia parece ter vontade própria, mas seus maus humores são um jogo de dados, fazendo recair ora aqui, ora ali os efeitos violentos das agressões que sofreu. A atmosfera esquenta, os oceanos esquentam, e o calor tudo destrambelha. A ilha de Maui, no Havaí, se acabou em fogo, assim como se incendiaram as florestas do Canadá, da Argélia e da Grécia.

Inundações assolam a Índia e ameaçam o Taj Mahal. Enchentes simultâneas atingiram Brasil, Grécia, Espanha, Turquia, Bulgária e Hong-Kong, tudo isso nesse ano de 2023, que ainda está longe do fim. Roca Sales e Muçum, no Vale do Taquari, sucumbiram sob as águas. Já não é crise, é colapso climático.

Um dia, cada cidade, cada região cairá sob a fúria climática. O Rio de Janeiro, que já caiu antes, cairá de novo. As águas, as pedras e a lama despencarão das encostas, o mar subirá como nunca antes. Ai de ti Copacabana, já disse Rubem Braga. Ai de ti Cidade Maravilhosa! Sabemos que a desgraça virá, não uma vez, mas várias. 

Mas os governantes fingem não saber. Os prefeitos e governadores também estão nesse jogo de dados com Gaia. E torcem para que a catástrofe da vez não recaia em seu território durante o seu mandato. A prevenção da destruição e das perdas de vidas deveria ser a política mais urgente das cidades. Mas, devem pensar os prefeitos, como colocar recursos na prevenção, se a violência de Gaia pode demorar a escolher a sua cidade? Prevenção não dá voto, atendimento a flagelados sim.  

As casas precárias continuam penduradas nos topos dos morros e nas beiras (ou já seria nos leitos?) dos rios. Bairros inteiros estão em áreas baixas, sujeitas a inundações. Existem inúmeros mapas e estudos mostrando os locais passíveis de deslizamentos e inundações. Estão mapeadas as áreas que os mares deverão tomar, com a subida da temperatura da Terra. E boa parte dessas áreas estão ocupadas. O que fazem a respeito o prefeito e o governador?

É preciso planejar com urgência o que fazer. Conter as águas ou realocar moradores, algo precisa ser feito. Mas não, sequer um órgão específico para as questões referentes à crise climática temos. Ao deus-dará, entregues à sorte, seguimos vivendo a vida em seu cada dia, pretensamente ingênuos na nossa felicidade litorânea. Até a hora do desastre.

Artigo publicado no Diário do Rio em 21 de setembro de 2023.

domingo, 17 de setembro de 2023

O fim do anfiteatro da Lapa

O antigo aqueduto que trazia a água do rio Carioca para a velha cidade do Rio de Janeiro, conhecido como Arcos da Lapa, com o perdão do Cristo Redentor, talvez seja o monumento mais importante que aqui temos. É importante por ser uma notável obra de engenharia, ainda quando a cidade sequer era a capital da colônia. É importante também por sua bela e marcante presença na paisagem da área central. E é querido por estar no reduto da boemia e por dar passagem ao bondinho de Santa Teresa. 

Durante o século XIX, e início do XX, a Lapa adensou-se, e inúmeras edificações ecléticas, e edifícios de apartamentos foram construídos no entorno dos Arcos. Assim, a visão que se tinha daquela obra passou a ser fragmentada, filtrada pela cidade. Três arcos no fim de uma rua, um arco da janela de um apartamento, os arcos em diagonal da sacada de um sobrado. Era assim que os Arcos eram vistos, e não havia nada de errado com isso. Até que as concepções urbanísticas dos arquitetos modernistas conseguiram se impor.

Uma avenida cortando a cidade de Norte a Sul começou a ser traçada. Para tanto, diversos sobrados da Rua da Lapa foram demolidos, assim como no Largo da Lapa. A avenida avançaria pelo que hoje é a SAARA, não fosse a preservação daquela área pelo Corredor Cultural. Da sua grandiosidade original só restou a atual avenida Paraguai, um trecho curto atravessando o vazio.

Vieram também projetos equivocados de conjuntos de prédios modernistas, de autoria de importantes arquitetos, entre eles Affonso Eduardo Reidy. Os projetos não foram adiante, mas as demolições que provocaram já estavam feitas. Sobrou uma Rua da Lapa como uma boca banguela, em que alguns sobrados estão no antigo alinhamento e os prédios mais recentes têm afastamentos exagerados. Sobrou também um Largo da Lapa desestruturado, um grande vazio, onde, como era caro aos modernistas, os Arcos deveriam reinar absolutos, sem um contexto urbano a lhes circundar. E vias cruzando em X num desenho ilógico. 

Em 1992, com projeto do arquiteto Augusto Ivan, a Lapa foi reurbanizada. Uma das intenções do projeto era reordenar a geometria das vias, já que as diversas demolições ali ocorridas tinham resultado em calçadas estreitas, largas pistas para automóveis e sentidos conflitantes dessas vias em relação à disposição do casario. Havia ainda a intenção de dotar o entorno dos Arcos da Lapa de um projeto paisagístico que mitigasse o estrago já feito. 

A intervenção realizada criou um anfiteatro no largo diante dos Arcos, em que os degraus eram construídos com lajedos, aquelas enormes placas de pedra que pavimentaram algumas calçadas da cidade no passado. Nos anos que se seguiram, esse anfiteatro recebeu diversas manifestações artísticas, como peças de teatro, apresentações de grupos circenses, espetáculos de rock e o animado carnaval da Lapa. Lá se reuniam os últimos foliões nas madrugadas da quarta-feira de cinzas.

No entanto, na primeira administração do atual prefeito, seu então secretário para todos os assuntos urbanos e Patrimônio cismou com o anfiteatro. Talvez fosse um preconceito estético, talvez uma tentativa de evitar que crianças de rua ali se escondessem. O fato é que o anfiteatro foi demolido. 

No seu lugar ficou apenas uma área pavimentada, pobre em termos de concepção paisagística. Os lajedos foram dispostos em semicírculo e as pedras costaneiras, algumas já muito danificadas foram reaproveitadas. Não houve sequer o cuidado de substituir aquelas já muito danificadas, resultando em verdadeiros painéis de caquinhos. A cidade perdeu um espaço de apresentações artísticas e poucos se deram conta disso. E os Arcos, bem ao gosto dos modernistas, ficaram olimpicamente isolados na paisagem.

Artigo publicado em 07 de setembro de 2023 no Diário do Rio.

O coroinha

foto Roberto Anderson

O ateu, quando em uma missa, tem duas possibilidades de como se portar: ou se integra à paisagem, sentando e levantando, e movendo a boca durante as rezas, ou permanece imóvel, correndo o risco de ser tomado por desrespeitoso. Mas, nesse caso, pode passear seus olhos por tudo o que se passa, observando, analisando, comparando, exercendo de verdade o ditado de um olho no padre, outro na missa.

No passado, os ritos da igreja católica já foram bem mais misteriosos e complexos. A mudança para a missa na língua do país, com o abandono do latim, e a virada do celebrante para a frente, buscaram aproximar os fiéis da celebração, dando-lhes inclusive funções, como algumas leituras e o cumprimento aos que se encontram mais próximos. 

Mesmo assim, permanecem interessantes variações nos ritos, de acordo com os eventos que são celebrados. Além das missas normais, há aquelas especiais, como a da Páscoa, a do Natal, sem falar nos ritos mais complexos de todos, que são aqueles da semana santa. É quando há a cerimônia do lava-pés. Mas, nada se compara ao acendimento do círio pascal, cuja chama é a única luz na igreja às escuras. Grandes alfinetes, simbolizando os cravos que prenderam o Cristo à cruz, são espetados na larga vela, entre palavras que parecem apenas conhecidas pelo celebrante. E há as missas solenes, com cânticos, entradas processionais e alguma condescendência ao velho latim.

O padre a tudo conduz, mas há alguém que faz a ponte entre os fiéis e o sacerdote: o coroinha. Ele é um dos fiéis, mas galgou uma posição acima. É quase um concelebrante, não fora apenas um ajudante. Mas as suas vestes indicam que ele ultrapassou a fronteira entre os fiéis e o sacerdote. Ele é um fiel com proximidade ao vinho e ao pão. Ele atravessou os limites que separam a nave do altar. 

O coroinha é compenetrado, cioso da sua posição. Todos os seus gestos têm mais cerimônia do que os do próprio padre. Ele não vira de costas para o altar. Antes, caminha de costas, recuando até onde considera que Deus não se zangará. Ele pega o cálice que o padre lhe entrega, como se fosse o maior tesouro do mundo. Ele se coloca atrás do padre, as mãos em suspenso, prontas para executar a tarefa seguinte. Ele faz soar o sino, ele balança o turíbulo com o incenso, envolto na fumaça com a majestade de um futuro príncipe. 

Ele não age com naturalidade, como a do padre, habituado à função por anos de exercício. Ele é provisório, sua performance é testada a cada dia, passível de ser substituído por novo coroinha já na próxima missa. Sua atuação é afetada por essa precariedade, o que lhe confere um quê de nervosismo, um certo ar de neurastenia.

Ao mesmo tempo, o coroinha precisa se manter leve e diáfano. Ele precisa parecer assexuado e, de preferência, ser jovem. O buço não lhe cai bem. Quanto menos adentrado na puberdade, melhor. Se se torna adulto, vira um sacristão. Um ser incorporado aos bens da igreja. O coroinha não, ele é um ser passageiro. 

O coroinha é o anjo que esvoaça em torno do padre, a ave pernalta que delicadamente sobe e desce os degraus do altar, o ser solícito que atende ao padre, que lhe enxuga o suor da testa, que lhe passa o cálice e a patena. De preto, ou de vermelho, com rendadas sobrepelizes, ele é a festa para os olhos do fiel distraído, e o enigma para o ateu curioso.

Artigo publicado em 14 de setembro de 2023 no Diário do Rio.

domingo, 3 de setembro de 2023

Alterando a paisagem carioca

Implosão da antiga fábrica da Brahma

O Rio de Janeiro já teve administradores que em muito lhe modificaram a paisagem. Aliás, essa parece ser uma tradição. Desde a colônia, os responsáveis pela administração da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro aterraram várias de suas lagoas, alagados e praias, cortaram ou desmontaram seus morros e destruíram seus edifícios mais icônicos.

A partir de 1850, por indicação da Câmara, teve início o aterro do Saco de São Diogo e alagados vizinhos, o que permitiu o surgimento da Cidade Nova, do Estácio e do Catumbi. Já no século XX, Pereira Passos, demoliu a cidade de feição portuguesa e abriu novas avenidas, consideradas largas para a época. Carlos Sampaio não ficou atrás, e demoliu o Morro do Castelo, antigo berço da cidade. Com o Castelo, ruíram a igreja e o colégio dos jesuítas, os sobrados coloniais e a fantasia de tesouros ali enterrados. Henrique Dodsworth, a exemplo de Passos, demoliu centenas de sobrados e a Igreja de São Pedro dos Clérigos, para abrir a avenida Presidente Vargas. Na década de 1950, uma série de prefeitos indicados pela presidência da República quase arrasaram por inteiro o Morro de Santo Antônio. 


Mais para o fim daquele século, o prefeito Marcos Tamoio, ao alterar legislações sobre gabaritos, interferiu de forma extremamente negativa na paisagem da Zona Sul, com a permissão de construção acelerada de altos edifícios. Tão altos, que aqueles da orla passaram a sombrear a areia da praia. Mas nenhum desses teve a possibilidade de alterar tanto a paisagem carioca, e de forma tão abrangente, como Eduardo Paes. Estando em seu terceiro mandato, e com um estilo de atuação bastante ousado, para o bem ou para o mal, vem mudando profundamente a imagem da cidade. 


Na Área Portuária, Paes produziu a demolição de uma obra infame do período rodoviarista, o Elevado da Perimetral, mas levando junto armazéns, galpões e ruas de paralelepípedos que caracterizavam a atividade que antes ali era exercida. No Catumbi, demoliu a antiga fábrica da Brahma para no seu lugar ver surgir um elefante branco de vidros espelhados, que até hoje não tem quem ocupe. Na Lapa, com a desculpa de afastar garotos de rua, destruiu o anfiteatro que existia junto aos Arcos.


Estas são apenas as mudanças mais evidentes operadas pelo atual prefeito na imagem da cidade. Mas, a exemplo de Marcos Tamoio, é no campo das alterações das legislações de edificação e de uso do solo, e nas consequências que elas provocam, que o prefeito vem promovendo uma transformação que poderá impactar negativamente, e de forma disseminada, a paisagem carioca. Seguindo os ensinamentos de Marcelo Crivella, o prefeito fez retornar a possibilidade de legalizar puxadinhos construídos irregularmente, o “mais valia”, e aquelas irregularidades ainda em projeto, o “mais valerá”. Tudo mediante pagamento, naturalmente.


Na área das Vargens, o prefeito conseguiu aprovar uma legislação rejeitada pelos moradores, que aumenta os seus níveis de ocupação. Na Lagoa de Marapendi, para a criação de um campo de golfe para as Olimpíadas, o prefeito eliminou o trecho que faltava executar da avenida-parque Prefeito Dulcídio Cardoso.  


Para tentar viabilizar a ocupação do Centro com moradias, uma medida correta, o prefeito recorreu a incentivos à construção ali de edifícios residenciais, o Reviver Centro. No entanto, tais incentivos têm como consequência o adensamento de bairros da Zona Sul. Com a resposta insatisfatória do mercado imobiliário, viciado em Barra e Zona Sul, bairros que ainda continuam largamente disponíveis para seus projetos, o prefeito dobrou a proposta, enviando à Câmara o Reviver Centro 2, ou PLC 109/2023. Por esse projeto, ainda em discussão na Câmara de Vereadores, a mesma área edificada no Centro poderá ser replicada em uma vez ou uma vez e meia (em caso de habitação social) em bairros das zonas Sul e Norte, Barra e Recreio. Ou seja, esses últimos bairros “pagam” com mais adensamento o "favor" das construtoras em edificar no Centro.


O prefeito propôs também a liberação total em altura para prédios entre o Castelo e a Candelária. Ali, exemplares icônicos da arquitetura modernista, como a ABI, o MEC e o antigo Instituto de Resseguros, além de belos prédios Art Déco e ecléticos, poderão ter que conviver com torres de mais de cinquenta pavimentos, ou mesmo serem derrubados para darem lugar a elas. Mas, alguém imagina que o mercado imobiliário se sentiu plenamente contemplado? Em acordo com os vereadores, seus representantes conseguiram que os benefícios, anteriormente propostos para novas edificações na área entre Castelo e Candelária, também fossem estendidos para todo o Centro, ou seja, sobre áreas do Corredor Cultural, Cruz Vermelha e outras áreas preservadas.


Paes só teria produzido encrencas? Não, que o digam os parques de Madureira, de Deodoro e o futuro Parque de Realengo. E também o VLT e o BRT, apesar de seus problemas. Mas, até aqui, nenhum prefeito, seja através de obras, seja através de mudanças na legislação urbanística teve a capacidade de tanto interferir na paisagem construída da cidade. É bom lembrar que essas mudanças na legislação, que são referendadas pela Câmara de Vereadores, costumam provocar alterações por um longo prazo, ou seja, continuarão a gerar efeitos (e defeitos) bem após o fim do atual mandato do prefeito.  


Artigo publicado em 31 de agosto de 2023 no Diário do Rio.