domingo, 3 de setembro de 2023

Alterando a paisagem carioca

Implosão da antiga fábrica da Brahma

O Rio de Janeiro já teve administradores que em muito lhe modificaram a paisagem. Aliás, essa parece ser uma tradição. Desde a colônia, os responsáveis pela administração da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro aterraram várias de suas lagoas, alagados e praias, cortaram ou desmontaram seus morros e destruíram seus edifícios mais icônicos.

A partir de 1850, por indicação da Câmara, teve início o aterro do Saco de São Diogo e alagados vizinhos, o que permitiu o surgimento da Cidade Nova, do Estácio e do Catumbi. Já no século XX, Pereira Passos, demoliu a cidade de feição portuguesa e abriu novas avenidas, consideradas largas para a época. Carlos Sampaio não ficou atrás, e demoliu o Morro do Castelo, antigo berço da cidade. Com o Castelo, ruíram a igreja e o colégio dos jesuítas, os sobrados coloniais e a fantasia de tesouros ali enterrados. Henrique Dodsworth, a exemplo de Passos, demoliu centenas de sobrados e a Igreja de São Pedro dos Clérigos, para abrir a avenida Presidente Vargas. Na década de 1950, uma série de prefeitos indicados pela presidência da República quase arrasaram por inteiro o Morro de Santo Antônio. 


Mais para o fim daquele século, o prefeito Marcos Tamoio, ao alterar legislações sobre gabaritos, interferiu de forma extremamente negativa na paisagem da Zona Sul, com a permissão de construção acelerada de altos edifícios. Tão altos, que aqueles da orla passaram a sombrear a areia da praia. Mas nenhum desses teve a possibilidade de alterar tanto a paisagem carioca, e de forma tão abrangente, como Eduardo Paes. Estando em seu terceiro mandato, e com um estilo de atuação bastante ousado, para o bem ou para o mal, vem mudando profundamente a imagem da cidade. 


Na Área Portuária, Paes produziu a demolição de uma obra infame do período rodoviarista, o Elevado da Perimetral, mas levando junto armazéns, galpões e ruas de paralelepípedos que caracterizavam a atividade que antes ali era exercida. No Catumbi, demoliu a antiga fábrica da Brahma para no seu lugar ver surgir um elefante branco de vidros espelhados, que até hoje não tem quem ocupe. Na Lapa, com a desculpa de afastar garotos de rua, destruiu o anfiteatro que existia junto aos Arcos.


Estas são apenas as mudanças mais evidentes operadas pelo atual prefeito na imagem da cidade. Mas, a exemplo de Marcos Tamoio, é no campo das alterações das legislações de edificação e de uso do solo, e nas consequências que elas provocam, que o prefeito vem promovendo uma transformação que poderá impactar negativamente, e de forma disseminada, a paisagem carioca. Seguindo os ensinamentos de Marcelo Crivella, o prefeito fez retornar a possibilidade de legalizar puxadinhos construídos irregularmente, o “mais valia”, e aquelas irregularidades ainda em projeto, o “mais valerá”. Tudo mediante pagamento, naturalmente.


Na área das Vargens, o prefeito conseguiu aprovar uma legislação rejeitada pelos moradores, que aumenta os seus níveis de ocupação. Na Lagoa de Marapendi, para a criação de um campo de golfe para as Olimpíadas, o prefeito eliminou o trecho que faltava executar da avenida-parque Prefeito Dulcídio Cardoso.  


Para tentar viabilizar a ocupação do Centro com moradias, uma medida correta, o prefeito recorreu a incentivos à construção ali de edifícios residenciais, o Reviver Centro. No entanto, tais incentivos têm como consequência o adensamento de bairros da Zona Sul. Com a resposta insatisfatória do mercado imobiliário, viciado em Barra e Zona Sul, bairros que ainda continuam largamente disponíveis para seus projetos, o prefeito dobrou a proposta, enviando à Câmara o Reviver Centro 2, ou PLC 109/2023. Por esse projeto, ainda em discussão na Câmara de Vereadores, a mesma área edificada no Centro poderá ser replicada em uma vez ou uma vez e meia (em caso de habitação social) em bairros das zonas Sul e Norte, Barra e Recreio. Ou seja, esses últimos bairros “pagam” com mais adensamento o "favor" das construtoras em edificar no Centro.


O prefeito propôs também a liberação total em altura para prédios entre o Castelo e a Candelária. Ali, exemplares icônicos da arquitetura modernista, como a ABI, o MEC e o antigo Instituto de Resseguros, além de belos prédios Art Déco e ecléticos, poderão ter que conviver com torres de mais de cinquenta pavimentos, ou mesmo serem derrubados para darem lugar a elas. Mas, alguém imagina que o mercado imobiliário se sentiu plenamente contemplado? Em acordo com os vereadores, seus representantes conseguiram que os benefícios, anteriormente propostos para novas edificações na área entre Castelo e Candelária, também fossem estendidos para todo o Centro, ou seja, sobre áreas do Corredor Cultural, Cruz Vermelha e outras áreas preservadas.


Paes só teria produzido encrencas? Não, que o digam os parques de Madureira, de Deodoro e o futuro Parque de Realengo. E também o VLT e o BRT, apesar de seus problemas. Mas, até aqui, nenhum prefeito, seja através de obras, seja através de mudanças na legislação urbanística teve a capacidade de tanto interferir na paisagem construída da cidade. É bom lembrar que essas mudanças na legislação, que são referendadas pela Câmara de Vereadores, costumam provocar alterações por um longo prazo, ou seja, continuarão a gerar efeitos (e defeitos) bem após o fim do atual mandato do prefeito.  


Artigo publicado em 31 de agosto de 2023 no Diário do Rio.

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