domingo, 29 de outubro de 2023

O mercado manda

Imagine-se o presidente Lula convidando Marina Silva para ser a Ministra do Meio Ambiente e, em seguida, lhe informando que o licenciamento ambiental não estaria no seu ministério. Imagine-se o IBAMA, e toda a sua capacidade de fiscalizar desmatamentos, fora do Ministério do Meio Ambiente. Imagine-se que as licenças ambientais fossem emitidas pelo Ministério de Desenvolvimento Econômico. Bastante absurdo e disfuncional, certo? Pois foi isso que o prefeito do Rio fez, não só com a área ambiental, mas também com a área do urbanismo.

Ao assumir esse seu terceiro mandato, Eduardo Paes esvaziou as secretarias de Meio Ambiente e de Urbanismo das suas funções de licenciamento ambiental e urbanístico. O prefeito atendeu aos anseios dos grandes empresários, que sempre reclamam dos limites impostos pelas regulamentações referentes ao uso do solo urbano e à proteção do meio ambiente. Criou, então, uma secretaria especializada em acelerar licenciamentos, sem o constrangimento do que pensam os formuladores daquelas políticas setoriais.

A Secretaria de Meio Ambiente que o prefeito entregou ao PT veio capenga, incapaz de opinar sobre a conveniência de empreendimentos na cidade do ponto de vista ambiental. O mesmo aconteceu com a Secretaria de Urbanismo. Ela ficou incapaz de gerenciar os licenciamentos de edificações na cidade. Não faz o menor sentido que os órgãos específicos da área não tenham ingerência sobre o que acontece lá na ponta.

Um bom exemplo de como é importante a integração entre o planejamento das políticas urbanas e o licenciamento é o caso do Morro Dois Irmãos, no final do Leblon. Toda a vasta área daquele morro, que se vê das praias de Ipanema e Leblon, era propriedade privada e já contava com uma licença para edificação de um hotel e dois edifícios. O então Secretário Alfredo Sirkis, percebendo o terrível impacto que tal projeto teria na paisagem carioca, propôs ao proprietário a troca de lugar do potencial construtivo do seu terreno. E assim se fez, a metragem quadrada destinada a enfear a paisagem da orla foi acomodada em um terreno na Barra. E o morro foi reflorestado.

Ora, se o Secretário não tivesse ingerência sobre o licenciamento, a única lógica a presidir a análise daquele empreendimento teria sido o frio parâmetro da legislação, que acolhia aquela barbaridade. Do ponto de vista do mercado estava tudo certo, mas a cidade perderia muito.

Nesta gestão do prefeito Paes, os licenciamentos estão na alçada de Chicão Bulhões (Francisco Siemsen Bulhões Carvalho da Fonseca). Ele é advogado, eleito deputado estadual pelo Partido Novo e, até onde se sabe, sem vinculação acadêmica, nem com a área ambiental, nem com a do urbanismo. 

A Secretaria Municipal de Urbanismo, apesar de cortada de grande parte de suas funções, inicialmente vinha sendo gerida pelo arquiteto Washington Fajardo, o qual foi depois substituído pelo respeitadíssimo arquiteto Augusto Ivan. No entanto, no último dia 06 de outubro as funções do urbanismo, que ainda se encontravam na secretaria específica, foram transferidas para a secretaria comandada por Chicão Bulhões. Esta secretaria passou então a se chamar Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico.

Assim, as questões referentes à formulação das políticas urbanas da cidade, nesta gestão, passam definitivamente a serem vistas pela ótica do desenvolvimento econômico. É o mercado ditando as regras urbanas, como já vem ocorrendo com toda a nova legislação urbana encaminhada à Câmara de Vereadores nos últimos tempos. Paisagem da cidade? Conforto e qualidade dos bairros? Para que, se sempre cabe mais um prédio com apartamentos a serem oferecidos a investidores? Não é só na segurança pública que o Rio não vai bem...

Artigo publicado em 26 de outubro de 2023 no Diário do Rio.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Rio favela

Manguinhos - foto Roberto Anderson

O Rio é uma cidade maravilhosa. Mas, é também complicada. A ela cabe, como uma luva, a expressão atribuída a Tom Jobim de que o Brasil não é para amadores. Para Zuenir Ventura, uma cidade partida. Para moradores de outros estados, uma cidade violenta, onde se é assaltado, sequestrado ou morto a qualquer descuido. Com certeza, cidade bagunçada, onde ônibus não param nos pontos, motoristas não respeitam sinais e amam parar em fila dupla, e agendamentos de horários são ficções. Mas, também, cidade onde desconhecidos dão bom dia, e o garçom, ou o atendente do bar, podem ser os seus melhores amigos.

O Rio tem bairros que o Brasil inteiro conhece. São cantados em pérolas da nossa música. Suas paisagens e recantos são cenários das novelas, assim como são a moradia dos atores que nelas brilham. O Rio tem artistas de diversas áreas. Eles passeiam por aí e o carioca faz que é natural, deixando o escândalo para os paparazzi. 

No Rio nasceram as favelas e aqui elas prosperaram. Segundo o Censo de 2010, seriam 763 localidades, abrigando aproximadamente 1,4 milhão de habitantes, ou 22% de toda a população da cidade. Como há anos não existem políticas municipais de habitação social, essa proporção só tende a aumentar. Há aquelas favelas bem pequenas e discretas, há aquelas supernovas, que não existiam no ano passado, e há as supergrandes, com a alcunha de complexos. 

Como os bairros da cidade, as favelas são bastante diferentes entre si. Algumas têm vistas privilegiadas e moradores gringos, outras são escondidas até para os serviços públicos. Umas estão nas partes altas dos morros, com riscos de deslizamentos, outras nas áreas planas, inundáveis, junto às beiras dos rios, das lagoas, ou da baía. Mas em uma coisa todas se parecem: estão dominadas por grupos armados, seja do tráfico, seja da milícia.

Os endereços nas favelas nem sempre têm logradouro e número, mas isto é compensado pela sonoridade e inventividade de sua nomenclatura. Novelas são uma grande fonte de inspiração ao se nomeá-las. São, inclusive, marcadores da época do seu surgimento e do grande crescimento da cidade em direção à sua Zona Oeste. É o caso da Sangue e Areia (1967) em Bangu, da Bandeira II (1971) em Del Castilho, da Cavalo de Aço (1973) e da Rebu (1974) em Senador Camará, da Te Contei (1978) em Parada de Lucas, da Final Feliz (1982) na Pavuna, da Roque Santeiro (1985) no Itanhangá, da Pantanal (1990) no Recreio, da Renascer (1993) no Tanque, da Salsa e Merengue (1996) em Ramos, da Uga-Uga (2000) em São Cristóvão, e da Boogie Woogie (2014) na Ilha do Governador. 

É bom lembrar que o fenômeno pode ocorrer também no asfalto, como o condomínio Selva de Pedra, no Leblon, construído onde antes existiu a favela da Praia do Pinto. A Globo tem mais capacidade de influenciar essa nomenclatura do que outras redes de TV, havendo inclusive a favela Criança e Esperança, em Guadalupe. Brevemente, poderão surgir aquelas com os nomes das novelas bíblicas, em voga nas outras emissoras. 

Mas, sendo a criatividade uma marca popular, nomes curiosos surgem com as mais variadas inspirações. O que dizer da Kinder Ovo em Ramos? E da Rato Molhado no Engenho Novo, da Cachorro Sentado em Vargem Grande ou da Piolho no Tanque? Algumas parecem advertir o visitante, como a Pé Sujo em Cordovil, a Buraco Quente em Senador Vasconcelos, a Mata Quatro em Guadalupe, e a Vala do Sangue em Santa Cruz. 

Não faltam as que homenageiam personalidades, como a JK no Andaraí, a João Goulart em Higienópolis, a Tancredo Neves na Taquara, a César Maia em Vargem Pequena, a Clara Nunes no Rio Comprido, a Tom Jobim na Pavuna, e a surpreendente Maestro Arturo Toscanini na Ilha do Governador.

Como a proteção do divino nunca é demais, há trinta e uma favelas com nomes de santos. A Barra da Tijuca, bairro emergente, tem poucas favelas, entre elas a São Tillon. Mas, em se tratando de Barra, não surpreende o fato de ser um santo não encontrado nas listas dos santos católicos. Há ainda a Cristo Redentor em Anchieta, a Sagrada Família na Tijuca, a Sagrado Coração em Santa Cruz e mais seis Nossas Senhoras. 

Há favelas com nomes inspirados em outras paragens, algumas distantes, como a Coréia em Senador Camará, a Baleares em Cavalcante, a Everest em Inhaúma, a Luanda em Guaratiba, a Budapeste na Ilha do Governador e a Malvinas em Irajá. Nessa lista, também se encaixa a Disneylândia em Brás de Pina. É sobre fantasia, mas é uma terra! Há também as que se referem a lugares novos. São dezesseis essas promessas de recomeço, como a Novo Palmares em Jacarepaguá.

Nas primeiras décadas do século XX, a proposta de cidade-jardim de Ebenezer Howard gerou uma febre de empreendimentos imobiliários para as classes média e alta, nomeados como jardim. Eles buscavam aplicar os princípios de mais espaços, mais áreas verdes e menor densidade daquela proposta. Exemplos disso são os bairros elegantes de São Paulo da região dos jardins. Como o pobre tem direito de sonhar e também ter o seu jardim, no Rio de Janeiro, são vinte as favelas com nomes de jardins e trinta e cinco as denominadas parques, como a Parque Jardim Beira Mar em Parada de Lucas. O detalhe é que diversos aterros levaram o mar para bem distante daquele jardim. Se não há propriamente jardins, há noventa vilas, como a Vila dos Crentes em Vargem Grande. Umbandistas seriam bem-vindos?

A mesma poesia contida na música Chão de Estrelas (...a lua furando o nosso zinco salpicava de estrelas nosso chão) aparece nos nomes de diversas favelas cariocas. É o caso da Pedacinho do Céu em Cordovil, da Chácara do Céu no Vidigal, da Raio do Sol em Guadalupe e da Pôr do Sol em Santa Cruz. Há aquelas que prometem Sossego, uma em Senador Camará e outra em Madureira. Tem a Recanto Familiar no Humaitá e até mesmo o paraíso, como a Shangrilá na Taquara. Se é pouco crível, talvez a Prazeres em Santa Teresa sugira uma felicidade mais terrena. Seguindo essa senda, há a Primavera em Cavalcante, a Verde é Vida em Senador Camará e a Beco da Esperança no Engenho de Dentro. Mas nada se compara à Relicário em Inhaúma, cujo nome sugere delicadeza e acolhimento, como toda moradia de gente deveria ser.

Artigo publicado no Diário do Rio em 19 de outubro de 2023.

domingo, 8 de outubro de 2023

Mais amores

foto Fellipe Sampaio
O hino nacional nos parece bonito. Mas, seria bonito por ser o nosso hino, ou seria ele genuinamente bonito? Veríamos nele beleza porque sempre o cantamos, não sendo razoável que cantássemos os de outros povos? Talvez não seja só por isso. Muitos veem imensa beleza na Marselha, o hino francês. Ela arrebata e quase nos engaja, apesar de seus trechos xenófobos e violentos. 

Em nossas vidas, volta e meia entoamos o hino nacional. Alguns mais velhos o fizeram em formação, no pátio da escola, outros nos estádios, ou diante dos televisores ligados no início dos jogos de futebol. Nesses momentos, ele é cantado de forma vigorosa. E à capela, acelerado, na segunda parte, que os organizadores dos torneios insistem em sonegar. 

Nos estádios, o hino nacional é como a sequência de movimentos e caretas maoris dos neozelandeses, a demonstração de força que pretende assustar os adversários. Já nas solenidades oficiais, ele é uma gravação que, de tão conhecida, parece ser regido pelo próprio Francisco Manoel da Silva. A cadência, algo marcial, seria fruto da longa ingerência militar na vida nacional?

Mas, vendo Maria Bethânia cantá-lo, temos a certeza de que nosso hino é bonito. Ela desliza pelas notas, fazendo-as permanecer um pouco mais em suspenso. Bethânia vai além da música, que tem seu mérito e até já rendeu obra sinfônica. Ela resgata a beleza das palavras que, muitas vezes, repetimos automaticamente. Ouvimos dela com calma, e renovado encantamento, que nossos bosques têm mais vida, que nossos campos têm mais flores, que nosso céu é risonho e límpido, onde o Cruzeiro do Sul resplandece. Que, à luz desse céu profundo, e ao som do seu mar, fulgura nosso país, florão da América. 

Pela voz de Bethânia lembramos do sonho de que esta seja uma terra adorada, uma mãe gentil, qualidade que quase esquecemos diante da rudeza das vidas desvalidas e do rugir dos enganados pelo populismo raivoso. No amor renovado pela Pátria, seja lá o que entendamos por isso, nos dispomos a demonstrar que um filho dessa terra não foge à luta. E chegamos ao auge de declarar não temer nossa própria morte!

Com doçura, Bethânia canta berços esplêndidos, lábaros, flâmulas, clavas e braços fortes. Em sua voz, entre outras mil, esta é a Pátria amada. Patriazinha diria Vinícius de Moraes. Ouvindo Bethânia, o amor e a esperança a esta terra desce. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 05 de outubro de 2023.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Buraco 467

 

foto Roberto Anderson

Eu moro no buraco, no buraco de número 467. A entrada, meio fora de esquadro, tá pintada de verde. Quero dizer mais ou menos pintada né, que um pouco de esperança nunca faz mal. Ao sair da rua, eu vou descendo escadas que o diabo talhou e a luz do dia vai ficando pra trás. A minha casa (ou será minha toca?) é lá pelo meio, onde o ar já escasseia e os insetos passeiam livres, donos do lugar. 

Quem começou a construir a nossa casa foi a bisa, quando era moça e tinha forças para lavar roupa pra fora. Minha avó trocou as madeiras por tijolos e meu pai bateu a laje que me cobre e as que estão acima. A bisa dizia que antes tinha vista, e que era bonita. Podia ver o mar e as pedras. E os poucos carros que passavam lá embaixo. Depois, os vizinhos foram construindo de qualquer jeito e a luz do dia foi desaparecendo da nossa janela. 

Aqui é assim, um constrói tapando a vista do outro, fechando a entrada de ar, e ganhando nova vista na laje de cima. Que também será tapada pelo puxado do vizinho, que acabou de bater uma laje nova. Não tem regra, vale a lei da necessidade. Foi assim desde o começo. Quando a bisa chegou, assentou suas madeiras numa clareira que abriu na mata que estava livre, acima dos barracos já construídos. E outros vizinhos foram chegando, fazendo a mata recuar cada vez mais, até quase desaparecer lá pra cima. 

Todo mundo constrói usando o que consegue comprar e com os conhecimentos que tem. Um que trabalha em obras diz quantos ferros tem que usar. O concreto é no sentimento, e na sabedoria, porque acho que aqui todo homem já esteve em obra. E todos ajudam a virar o cimento e assentar os tijolos. Bonito não fica, mas também não cai. Era bom se tivesse orientação de engenheiro, de arquiteto. Há até uma lei sobre isso, de assistência técnica a quem precisa construir. Mas aqui ela não chegou. 

A minha luz é de gato. Gato que os caras do movimento estão querendo cobrar. Estão aprendendo com os milicianos. Antes ela era legalzinha e tal. Eu usava a conta pra comprovar o endereço e poder fazer crediário. Mas agora nem adianta, tô encalacrado mesmo, com o nome todo sujo na praça. A água sempre foi gato. 

O que incomoda é viver nesse buraco quente, abafado. O pai teve tuberculose, demorou a curar. Quase que ele foi. Agora tá bem. Mas eu é que ando com essa tosse. Jogo game de guerras intergaláticas, mas essa minha tosse é de Dama das Camélias. Dá muito aí entre os moradores desses buracos. Se ver alguém tossindo muito, pode desconfiar. Essa semana vou no posto, pra ver o que é.

Como todo mundo, eu trabalho lá embaixo. Já fiz tanta coisa, que até perdi a conta. De call center, onde até o tempo pra ir ao banheiro era controlado, a garçom e segurança. Minha carteira de trabalho tá esfarrapada de tantas entradas e saídas. E de tanto mostrar pra polícia. Agora tô só nos bicos. Alguns dias tem, outros, nada. Eu ando pelas ruas deixando currículos, e sento nas praças pra descansar. Quando dá, como uma quentinha ou um sanduba. Chato é voltar sem ter conseguido nada.

Na entrada do buraco já teve uma árvore. O toco dela tá lá, no meio do degrau, cinza como tudo o que se pisa. Verde agora só a parede pintada. E a esperança de que um dia a vida vai melhorar. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 28 de setembro de 2023.