quarta-feira, 13 de julho de 2022

Parque ou Aterro?

Parque do Flamengo em 1970
Na sua origem, o Aterro do Flamengo serviria para viabilizar mais uma ligação rodoviária entre o Centro e a Zona Sul. Ele atualizaria a ligação anteriormente feita pelo Prefeito Pereira Passos no início do século XX, a Avenida Beira Mar. Décadas de acúmulo de automóveis e ônibus nas ruas da cidade haviam tornado aquela ligação insuficiente e a Zona Sul havia se transformado na área mais privilegiada da cidade.

Não fosse a conhecida atuação de Lota Macedo Soares, e não teríamos o Parque do Flamengo. E não fossem a arte paisagística de Burle Marx, os conhecimentos do biólogo Luiz Emygdio de Mello Filho, e as obras de arquitetura de Affonso Eduardo Reidy, o Parque do Flamengo seria mais um parque na cidade. Mas não, ele é um dos mais belos parques do país, à beira-mar, de onde se desfruta a magnífica vista da Baía de Guanabara e do Pão de Açúcar, e onde estão reunidas com maestria árvores, palmeiras e arbustos de várias partes do Brasil e de outros continentes. As diversas florações que ali acontecem são esplendorosas e nos levam a sempre agradecer a seus criadores.

No entanto, esse tesouro do Rio de Janeiro vive em crônico estado de abandono. Muitas espécies raras morreram e não foram repostas, e outras estão sem manutenção. O canteiro gramado perto do MAM, que reproduzia o desenho do calçamento de Copacabana, já não exibe desenho algum. Sem uma gestão presente, pessoas se sentiram no direito de plantar espécies arbóreas que nada têm a ver com o projeto original. E a insidiosa leucena (leucaena leucocephala), espécie invasora, começa a se apoderar de alguns espaços.

Bancos de concreto estão malconservados, tampas de bueiros foram furtadas, as áreas pavimentadas têm fissuras e buracos, assim como esburacadas estão as áreas com piso de saibro. Algumas construções do parque tiveram seus usos desvirtuados. É o caso do Pavilhão do Playground, construção que hoje sedia a administração do parque. Em volta do mesmo, se estabeleceu um estacionamento para dezenas de automóveis, que jamais deveriam estar naquele lugar. Isso sem falar no Tanque de Modelismo Naval, que há décadas permanece como um laguinho seco, sem que os visitantes sequer saibam o que foi um dia.

Por falar em estacionamento no parque, alguns dos que foram projetados ganharam coberturas para os automóveis, que assim passaram a permanecer por longas horas e pernoitar. Um dos estacionamentos foi transformado em área de operações da companhia de limpeza urbana. Por um certo tempo, o antigo bosque ao lado da Marina, onde tantos aniversários infantis já foram comemorados, foi irregularmente apropriado para estacionamento. Apesar do estacionamento ter sido desfeito por decisão judicial, a recomposição do bosque, obrigatória, nunca foi realizada.

O Parque do Flamengo é tombado pelo Iphan e faz parte do perímetro reconhecido como Patrimônio da Humanidade. No entanto, as recomendações do órgão de tombamento são pouco ouvidas. Administrar esse parque, com as suas dimensões, complexidades e importância, não é possível ao se improvisar algum aspirante à política em administrador. Pois é o que tem ocorrido há décadas. A administração do parque sequer está ligada à Fundação Parques e Jardins, que não tem controle sobre o que lá ocorre. Para a correta manutenção do Parque do Flamengo, além de uma boa administração e de recursos públicos, é preciso haver a participação ativa dos moradores e usuários, reunidos em associação. É o modelo que dá certo, por exemplo, no Central Park, em Nova Iorque.  

Ainda é muito comum que se nomeie o parque como aterro, especialmente entre pessoas mais velhas. Porém, o Parque do Flamengo se tornou uma realidade, sendo querido por todos. Nessas seis décadas de sua existência, as árvores cresceram e deram frutos que atraem pássaros de diversas espécies, dentre os quais se destacam as ruidosas maritacas. Milhares de pessoas, não só da cidade, como de diversas partes da Região Metropolitana, ali vão para usufruir de algumas horas de prazeroso lazer. O Parque do Flamengo existe e, apesar das sucessivas administrações municipais que talvez ainda o vejam apenas como um aterro, ainda é capaz de florescer.

Artigo publicado no Diário do Rio em 07 de julho de 2022.


Patrimônio e Sustentabilidade

Fazenda São Bernardino - Nova Iguaçu - foto Roberto Anderson
Num estudo de 1995, a pesquisadora francesa Cyria Emelianoff¹ buscou analisar as ações empreendidas pelas cidades que se congregavam na rede de cidades sustentáveis, surgida após os encontros de Aalborg, na Dinamarca, que produziu a Carta de Aalborg, e de Manchester, na Inglaterra, em 1994. Segundo a autora, essas cidades pareciam trabalhar em três frentes, ou vetores de concentração de ações e projetos: o ecossistema, o patrimônio e a participação democrática.

Para a autora, as cidades que privilegiavam o ecossistema, se mobilizaram em relação a temas, como a prevenção do efeito estufa, a camada de ozônio e a reciclagem de rejeitos. Como consequência, desenvolviam estratégias relacionadas à exploração de energias renováveis, à limitação dos deslocamentos pendulares, à taxação da energia fóssil, ao reforço à pedestrianização, a programas cicloviários, e à não subvenção ao automóvel.

Para as cidades que privilegiavam o Patrimônio, a palavra de ordem era qualidade de vida. Suas estratégias estavam voltadas para a requalificação do tecido urbano, dos espaços públicos, dos quarteirões e dos prédios históricos; a valorização do patrimônio vivo e natural, incluindo a fauna e a flora urbanas, a “renaturalização” e a recuperação de rios; e a valorização dos espaços públicos e do convívio urbano.

Por fim, para as cidades que buscavam maior participação dos cidadãos, as estratégias desenvolvidas eram a mobilização dos habitantes, o desenvolvimento de parcerias, e estratégias informais de participação política, mais ou menos ativas, relacionadas a escolhas de modos de vida e itens de consumo.

A sustentabilidade poderia estar se construindo, assim, no encontro dessas várias ações. Aqui, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, podemos observar duas cidades com ações do poder público concentradas nesses dois primeiros vetores. Niterói tem buscado produzir uma série de iniciativas no campo ambiental e em Nova Iguaçu, na atual administração municipal, se observa importantes ações na área do Patrimônio.

Como se sabe, boas iniciativas dependem da presença de pessoas certas à frente dos órgãos que as executam. Em Nova Iguaçu, o atual Secretário de Cultura é o ex-Diretor Geral do Inepac, Marcus Monteiro. Por sua iniciativa, o Município vem empreendendo ações de recuperação do Patrimônio local, entre as quais cabe destacar aquelas dirigidas ao sítio arqueológico de Iguaçu Velho, à Fazenda São Bernardino e às antigas estações de trens de Tinguá, Rio D’Ouro e Vila de Cava.

Iguaçu Velho, às margens do rio Iguaçu, é onde se encontrava a antiga Vila Iguassú. Lá ainda é possível se visitar a torre sineira da antiga Igreja Matriz, as colunas do pórtico do cemitério Nossa Senhora do Rosário e sua escadaria. Esses bens passaram recentemente por um processo de restauro.

A fazenda São Bernardino é de 1875, tendo sido importante no ciclo do café. O sítio histórico é composto pela antiga sede da fazenda, a antiga senzala e o pátio da fazenda. Tudo se encontra em avançado processo de arruinamento, para a tristeza dos iguaçuanos, que há décadas desejam a recuperação desses bens. Atualmente a Secretaria de Cultura local promove a recuperação da antiga senzala e a sua transformação em espaço dedicado à cultura.

As antigas estações de trens de Tinguá, Rio D’Ouro e Vila de Cava completam a lista de bens em recuperação no município. A antiga Vila de Iguassú e a Fazenda São Bernardino comporão o recém-criado Parque Histórico de Iguaçu Velha. O parque inclui outros bens, como os vestígios da Casa de Câmara e Cadeia, o Porto da Praça do Comércio e o Chafariz da Vila de Iguassú. São iniciativas que mostram que existe cuidado com a história e a Cultura fora do centro da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde nem sempre isso vem ocorrendo.  

1EMELIANOFF, Cyria. “Les Villes Durables: L’émergence de nouvelles temporalités dans de vieux espaces urbains”. In: Ecologie Politique, nº 13, printemps 1995, pp. 37-58.

Artigo publicado em 30 de junho de 2022 no Diário do Rio.

Desregulamentação da legislação urbana

Urca - foto Roberto Anderson
Desde a década de 1980, com a chegada de Margaret Thatcher e Ronald Reagan ao poder, o mundo capitalista entrou num processo de desregulamentação. Suprimiram-se legislações de controle da produção de bens e serviços, e de proteção ao trabalho e aos cidadãos. Em busca de melhores condições de competitividade de produtos nacionais no mercado global, boa parte do arcabouço do sistema de proteção social foi destruida. Para o comércio mundial foi muito bom, mas para os cidadãos, nem tanto. Houve aumento generalizado da pobreza, da concentração de renda e da desigualdade social.

Os ecos desse processo se fizeram sentir fortemente no Brasil, onde sequer havia um bom sistema de proteção social. Jovens, e outros nem tão jovens assim, hoje circulam pelas ruas fazendo entregas sobre bicicletas que não lhes pertencem, para empresas que não lhes empregam, sem garantias de cobertura quando adoecem ou se acidentam. E sem contribuir para suas aposentadorias. Donos de veículos trabalham horas além de qualquer jornada regulamentada para obter algum retorno com o aluguel dos mesmos.

No plano federal, o governo Bolsonaro aprofundou ainda mais a desregulamentação. Agrotóxicos são livremente aspergidos nos alimentos que consumimos sem que a Anvisa interfira. O Exército não mais controla a farta aquisição de armas e munições que acontece no país (mas quer controlar as urnas eletrônicas). O Estado não controla a invasão de terras públicas na Amazônia e o Poder Executivo não tem controle sobre a distribuição de verbas de boa parte do orçamento federal, dito secreto.   

Na Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, esse processo se dá de diversas formas. Com a justificativa de desburocratizar o licenciamento de novas construções na cidade, o mesmo foi acelerado até torná-lo bastante superficial. Aliás, essa análise nem mais cabe à Secretaria Municipal de Urbanismo. E a responsabilidade por ajustar o projeto às legislações vigentes passou a ser dos autores dos projetos e dos construtores.

Tal alteração no processo de licenciamento de edificações foi feita sem que se soubesse a porcentagem de problemas e erros encontrados anteriormente, quando os projetos eram detalhadamente analisados pela Prefeitura. Assim, a fiscalização a posteriori passou a ser responsável por garantir que problemas não ocorram, fiscalização essa sempre deficitária num país onde a cultura vigente é a de tentar burlar a lei. Ao contrário de um sistema de precaução, entramos num sistema de correção de erros após serem encontrados, o que nem sempre será possível.    

A mais recente manifestação de desregulamentação aqui no Rio está se dando na discussão do novo Plano Diretor. Conforme já anunciado, foi proposta a supressão das legislações locais, os Planos de Estruturação Urbana - PEUs, em favor de uma legislação única para toda a cidade. Os PEUs foram introduzidos em nossa legislação pelo PUB-Rio, de 1977. Um avanço na direção do reconhecimento da singularidade de cada espaço da cidade e da diversidade de características dos diversos bairros que compõem o Rio de Janeiro. A elaboração dos PEUs já existentes contou com a participação dos moradores locais e, teoricamente, eles refletem acordos entre aqueles e o poder público. Sim, são trabalhosos e ainda não cobrem a maioria dos bairros, mas não quer dizer que sejam ruins, muito pelo contrário.

Dar voz ativa aos moradores é o que há de mais atual em processos de governança democrática. Cabe ao poder público ter argumentos para reduzir as tendências ao chamado nimby (not in my back yard ou não no meu quintal). Os moradores da Urca, por exemplo, foram muito aguerridos contra a instalação do Centro de Design Europeu no antigo Cassino da Urca. Agora vão se deparar com a escola Eleva e o risco dos automóveis de seus ricos pais atravancarem a entrada do bairro. Outros grupos de moradores desejam manter a exclusividade da função residencial em suas ruas. Certamente, isso tem lhes garantido calma e silêncio, especialmente agora que templos vêm se transformando em fontes de poluição sonora e bares congregam grupos ruidosos no período noturno. Mas que mal faria uma quitanda, uma loja de conveniência ou uma padaria numa rua residencial? Para que esses estabelecimentos sejam aceitos, é preciso convencimento, diálogo e paciência.

As discussões para o novo Plano Diretor trazem algumas boas propostas, como a outorga onerosa, que permitirá recolher aos cofres públicos parte da valorização dos terrenos ou o IPTU progressivo para terrenos que permaneçam ociosos, sem edificação. A limitação de muros externos em 1,10m de altura é uma medida que reduziria a tendência de fortificação dos imóveis, que torna algumas ruas verdadeiros desfiladeiros entre muros (e cachorros latindo agressivamente). Também a regulamentação do Estudo de Impacto de Vizinhança é uma boa medida. É interessante lembrar que esse instrumento foi usado sem regulamentação, num processo com muitas falhas, na autorização para a demolição da Perimetral.

O fato é que a Câmara de Vereadores, a instância em que o novo Plano Diretor será aprovado, deveria olhar com cuidado as vantagens da existência dos PEUS, as razões pelas quais não se estenderam aos demais bairros e os riscos de se caminhar em direção a legislações generalizantes e simplificadoras, já que a cidade é complexa. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 23 de junho de 2022.

Aqui morrem indigenistas e ambientalistas

Bruno Pereira e Dom Phillips
Seguimos vivendo no país onde se mata ambientalistas, defensores dos direitos humanos, indigenistas e pessoas que lutam pelo direito à terra. De acordo com a Global Witness, em 2020 o Brasil foi o quarto país do mundo em que mais se matou ativistas ambientais. E em 1019 foi o terceiro país do mundo, uma triste liderança. Isso sem falar nos milhares de pessoas negras mortas em consequência do racismo que permeia nossa sociedade e o Estado brasileiro.

Esta é a terra onde foi assassinado o ambientalista Chico Mendes, que lutava pela preservação da floresta na reserva extrativista de Xapuri, no Acre, onde morava. Aqui, entre outros, foram assassinados a religiosa americana Dorothy Mae Stang, o indígena Paulo Paulino Guajajara, e o indigenista Maxciel Pereira dos Santos. Agora mais duas vítimas: o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico, residente no Brasil, Dom Philips, brutalmente assassinados por denunciarem o crime organizado que se instalou na Amazônia.

Como demonstram os fatos, há muito tempo a realidade na Amazônia é dura para quem defende o meio ambiente e os povos indígenas. Mas nos últimos anos isso se agravou muito. Bolsonaro vem atiçando os predadores da Amazônia. Seu governo desvirtuou o Ministério do Meio Ambiente, desestruturou a Funai e o Ibama, dificultou as multas a infratores, fez acordo com madeireiros ilegais, fez vista grossa aos alertas de incêndios e desmatamentos, e precarizou a proteção aos povos indígenas. Os agentes do crime organizado se sentiram fortalecidos e a vida de quem a eles se opõe ficou em risco extremo.

Bolsonaro exonerou o indigenista Bruno Pereira de seu cargo na Funai por ele ter, corretamente, cumprido com o seu dever de proteger os territórios indígenas contra invasões pela mineração ilegal. Sem condições de trabalho, o servidor público se viu forçado a pedir licença e tentar atuar junto a uma organização não governamental, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari - Unijava. Sem a proteção do Estado brasileiro, sua atuação passou a ser de alto risco. Décadas atrás, indigenistas como os irmãos Villas-Boas eram vistos como heróis nacionais. Atualmente são vistos como um estorvo aos interesses econômicos que querem destruir a Amazônia.  

O assassinato do indigenista Bruno Pereira é uma imensa perda para os povos indígenas e para o Brasil. Bruno buscou conhecer a cultura dos povos isolados, aprendeu línguas que desconhecemos, conquistou com ações a confiança de indígenas traumatizados com a violência que nossa "civilização" a eles impôs. Com sua morte se vai uma ponte que o Brasil decente tentava criar com esses outros seres humanos. Não é simples formar especialistas dedicados à questão indígena. Sem Bruno eles ficam mais vulneráveis à invasão e à destruição de seus territórios por pessoas gananciosas e inescrupulosas.

Dom Philips atuava como jornalista, investigando a situação da Amazônia e as ameaças aos povos indígenas. Sem o trabalho de pessoas como Dom, ficaríamos às escuras, sem informações do que realmente ali acontece. Não é culpa sua o fato de a Amazônia ter se transformado num território tão perigoso para jornalistas, quanto uma zona de guerra. Aliás, o Brasil se tornou um território perigoso para o exercício do jornalismo.

Ainda em choque pela confirmação dos assassinatos de Bruno e Dom, a sociedade brasileira quer saber o que o Estado brasileiro fará para impedir que outros ativistas ambientais sejam mortos na Amazônia. O que o Congresso Nacional tem a dizer? Já não basta de mortes? Há muitos responsáveis pela trágica situação da Amazônia. Mas, em última instância, Bolsonaro tem responsabilidade no assassinato de Bruno Pereira e de Dom Philips. E vindo dele, sabemos que nada será feito para mudar essa situação.

Artigo publicado no Diário do Rio em 16 de junho de 2022


O Serro

Serro - foto Roberto Anderson
O Rio de Janeiro é a minha casa, o lugar em que gosto de estar, que busco conhecer mais e mais, e para o qual dedico boa parte das minhas energias. Mas o Serro, em Minas Gerais, é a minha origem. Não é a cidade onde nasci, mas sou fruto da diáspora serrana. O apego a uma cidade que está na origem da sua família é algo muito forte, que num país de muitas mudanças, nem todos podem experimentar.

O Serro sempre esteve nas conversas da família, saudosa por ter ido buscar oportunidades de trabalho em cidades maiores. Sei das denominações que o Serro já teve. Sei do frio que era adicionado ao seu nome, da nobreza do antigo título de Vila do Príncipe, e da nomeação indígena para o lugar: Ivituruí. Sei da Serra do Espinhaço, onde a cidade se localiza. Sei da negra Jacinta de Siqueira, que teria descoberto o ouro que deu origem à cidade e deixado larga descendência. E sei das histórias dos personagens pitorescos, como a do Silvio Picolé, que ganhou essa alcunha depois de trazer de muito longe um picolé no bolso, novidade para a cidade, mas que já chegou derretido.

O Serro tem festas populares que são o orgulho da sua gente, como a Festa de N. Sra. do Rosário, com seus caboclos, marujos e catopês, ou a Festa do Divino, com a coroação do Imperador e da Imperatriz. O Serro tem um queijo que nenhum outro lugar tem. O Serro é uma cidade da corrida do ouro, que já conteve Diamantina, que tem igrejas e casario colonial e uma autoestima que a faz atravessar em paz a longa decadência. 

Quando caminho pela cidade, e piso o seu calçamento irregular em pé-de-moleque, penso nas andanças de minha mãe por essas ladeiras e becos, desafiando o conservadorismo local. Penso em todos os amigos que aqui fez e na sua entronização como Rainha do Avante, antigo time de futebol da cidade. Penso nela sendo disputada para formar par nos bailes do clube, exímia dançarina que foi. E penso também nos olhares de reprovação por sua independência em meio a uma sociedade patriarcal.

O Serro é uma cidade negra. A maioria das pessoas que se vê nas ruas do Serro é de negros e mestiços, antes humilhados e contidos em espaços subalternos, mas hoje ocupando postos mais diversificados e à frente de pequenos negócios. É provável que a elite de fazendeiros ainda seja branca, mas a festa que dá orgulho à cidade é negra. 

O Serro não alcançou a prosperidade de Ouro Preto, mas legou ao Brasil juristas e políticos, como os Ottoni, Pedro Lessa e Edmundo Lins, e grandes artistas do período colonial, como o Mestre Valentim e o maestro Lobo de Mesquita. Por ter ficado isolada do progresso, a cidade conservou seu Patrimônio, tendo sido tombada pelo Iphan em 1938.

De tempos em tempos retorno ao Serro. Lá descobri o footing noturno na praça, ingênua forma de flerte que não mais existe. Lá vi pela televisão o homem pisar na lua. Lá dancei com os caboclos da festa do Rosário. Lá conheci as diversas casas que um dia meus familiares habitaram e as ruas que trazem nomes de antepassados. Lá fui apresentado a primos distantes. Lá reconheço de onde vim.

Artigo pulicado em 09 de junho de 2022 no Diário do Rio


A emergência climática chegou

Mapa do Surging Seas para Zona Norte do Rio de Janeiro
Mais de cem mortos pelos desastres provocados pelas chuvas em Pernambuco. É doído demais. Chuvas na região são comuns nessa época, mas não nessa dimensão. Elas vêm em volumes cada vez mais absurdos. Morros e encostas habitadas se desfazem, soterrando os moradores. Rios extravasam para muito além de suas calhas, inundando ruas e casas, destruindo os poucos pertences das pessoas, isolando-os à espera de resgate. Vemos cenas de heroísmo e de solidariedade, mas não é normal que isso ocorra. O noticiário utiliza muito o termo tragédia para definir esses acontecimentos. Nas tragédias, o herói sofre derrotas ao se revoltar contra as forças do destino. Mas, nos desastres ambientais que nosso povo vem sofrendo, o destino trágico foi construído pela ação humana sobre o meio ambiente. Estamos vivenciando a crise climática, que vem nos atingindo com força, provocando enormes prejuízos materiais e perdas de vidas.

Nos últimos tempos tivemos chuvas fortes, também com inundações, deslizamentos de terra e perdas de vidas, em Minas Gerais e em Petrópolis. Em 2011, as chuvas provocaram terríveis desastres na Região Serrana, que custaram mais de 900 vidas. E vimos a seca no Sul, com a perda de colheitas, e os incêndios no Pantanal. Logo vêm outros eventos dramáticos, fazendo os mais recentes parecerem distantes. Mas não, eles são cada vez mais frequentes, mais próximos no tempo e mais intensos. 

Esses eventos extremos atingem fortemente as nossas cidades que, se não foram pensadas de forma a garantir a segurança e o conforto dos cidadãos, muito menos levaram em consideração a necessidade de preservar áreas ambientalmente mais sensíveis. A moradia das famílias pobres nunca foi de verdade planejada. Quando muito, alguns conjuntos habitacionais foram construídos nas periferias, não raro em áreas sujeitas a alagamentos. As pessoas então se viraram como puderam, em encostas, em beiras de rios, em áreas sujeitas a inundações.

Esse descaso agora vem cobrando um preço demasiadamente alto. São as vidas de brasileiros, em geral entre aqueles mais necessitados, e as suas economias que se vão. Os atuais e futuros prefeitos devem entender urgentemente que o mundo mudou para pior em função da crise climática. Ela chegou, é uma realidade.

As cidades brasileiras vão precisar reservar uma parcela significativa dos orçamentos municipais para usar em situações emergenciais, que serão cada vez mais frequentes. Isso significa fortalecer os sistemas de defesa civil, com mais treinamento, melhores equipamentos e locais de abrigo para desalojados. Significa também realocar moradias atualmente em áreas de risco. Não é mais possível deixar seus ocupantes confiados apenas na sorte ou na providência divina. Infelizmente, fatalidades ocorrerão, quer rezemos ou não. 

Nas cidades litorâneas haverá ainda o avanço do mar sobre áreas costeiras, em função da elevação dos níveis dos oceanos, outro efeito do aquecimento global. As notícias nos chegam aos poucos. Um pontal que teve suas casas destruídas aqui, um calçadão à beira-mar desmoronado ali. Se não fizermos nada, os prejuízos serão gigantescos.

Com relação à Cidade do Rio de Janeiro, já se tem clareza sobre as áreas passíveis de sofrer com esse avanço do mar. No caso de um aquecimento global de mais 2°C acima dos níveis pré-industriais, uma situação já bastante provável, haverá avanço das águas do mar sobre partes da Área Portuária, sobre as pistas dos aeroportos Tom Jobim e Santos Dumont, sobre a Praia da Reserva, sobre o Parque Olímpico e sobre áreas de Grumari. Como nem todos os países cooperam para a redução das emissões de gases do efeito estufa, e o atual presidente do Brasil incentiva o desmatamento, não é impossível que se chegue a uma situação mais absurda, de elevação da temperatura em mais 4°C. Nesse caso, a destruição alcançaria a Praça da Bandeira, áreas da Avenida Presidente Vargas, o Parque do Flamengo, a Cidade Universitária, áreas no entorno da Avenida Brasil, e áreas da Barra da Tijuca e Jacarepaguá. Além disso, municípios da Baixada Fluminense seriam também fortemente atingidos. Os atuais e os próximos prefeitos e governadores aguardarão o desastre ou tomarão alguma iniciativa? É bom que os eleitores pensem a respeito.  

artigo publicado no Diário do Rio em 02 de junho de 2022.


Mobiliário urbano carioca, ainda uma carência

Abrigo de ônibus do governo Chagas Freitas
A oferta mais ampla de mobiliário urbano padronizado na Cidade do Rio de Janeiro é algo relativamente recente. No início do século XX, foram instalados em diversas praças os gloriosos bancos Paris, nunca igualados em qualidade. E também diversas linhas de postes em ferro fundido, ou arcos para sustentação de luminárias, que eram o símbolo do progresso que a iluminação pública trazia. Muito apreciado era o “colar de pérolas de Copacabana” formado pela linha de postes com iluminação a vapor de mercúrio, instalados em 1936, e que seguiam a curvatura da orla.  

Depois, pareceu que a administração pública da cidade se esqueceu de como equipamentos assim eram importantes. A sua qualidade caiu muito, e foram feitas diversas improvisações. Exemplo disso, eram os pavorosos abrigos de ônibus instalados no período em que Chagas Freitas governou o Estado. Eles traziam inscritos no concreto o nome do governador. Abrigar o cidadão do sol e da chuva era uma benesse do mandatário! Somente alguns anos depois, no governo Brizola, surgiram os abrigos pré-fabricados em concreto, projetados por João Figueiras Lima, o Lelé, e produzidos pela antiga Fábrica de Escolas, projeto também daquele período. Alguns desses abrigos ainda resistem por aí, até mesmo com outros usos, como na Praça Ben Gurion, em Laranjeiras.

Como a querer recuperar o tempo perdido, o projeto Rio Cidade, concebido pelo então Secretário de Urbanismo, e depois prefeito, Luiz Paulo Conde, derramou uma profusão de modelos de postes, de abrigos de ônibus, de bancos, de lixeiras e de jardineiras na cidade. Cada eixo escolhido para receber uma intervenção passou a ter sua própria linha de mobiliário urbano. Postes tortos, fradinhos com bolas metálicas atarraxáveis nas pontas (que rapidamente foram furtadas), luminárias de luz indireta, bancos de concreto, havia de tudo.

No entanto, logo se percebeu que faltava uma economia de escala nessa fórmula. A cada abrigo ou poste necessitando de reposição, se fazia necessária a sua produção de forma quase artesanal. Por serem poucas unidades, produzi-los encarecia demais o processo. Assim, na gestão do próprio Conde como prefeito, foi realizada uma licitação para a implantação de um conjunto de itens de mobiliário urbano na cidade por empresas especializadas, que substituíram a maioria desse mobiliário anteriormente instalado. Para efeito dessa licitação, a cidade foi dividida em três grandes áreas e, desde então, passamos a conviver com abrigos de ônibus, painéis de publicidade e relógios digitais padronizados, frutos de design industrial.

Parte importante e integrante daquela licitação era a colocação de banheiros públicos em toda a cidade. Seriam banheiros dotados de tecnologia, com sistemas autolimpantes, que atenderiam uma secular queixa dos cariocas de todas as idades: a falta de banheiros públicos nas ruas. Porém, muito rapidamente, começaram os problemas e adiamentos. As empresas ganhadoras das licitações implantaram os abrigos de ônibus, dotados de espaços para a exploração de publicidade, assim como os relógios e, logicamente, os painéis publicitários. Mas os banheiros, ah os banheiros...

Logo surgiram notícias nos jornais de que havia problemas para sua instalação. Dizia-se, por exemplo, que era difícil conseguir que o órgão responsável fizesse as ligações de esgoto. Os poucos que foram implantados ficaram sem manutenção e passaram a apresentar problemas. Durante a pandemia acabaram lacrados e até hoje seguem inutilizados.  

Mas, antes disso, o cartunista Ziraldo, grande na sua arte, mas talvez não tão bom designer, levou ao prefeito a proposta de um mictório público simplificado. Alguns protótipos foram instalados com o nome de Unidade Fornecedora de Alívio – UFA. Em seguida, o prefeito anunciou a instalação de 100 unidades de UFA na cidade. Usou-se, inclusive, os recursos para a instalação dos banheiros da licitação de mobiliário urbano padronizado.

O grande problema com esses mictórios é que eles eram instalados de forma improvisada, aproveitando bueiros de águas pluviais, sem ralos nos pisos que drenassem os excessos da falta de pontaria masculina. Os pisos onde esses mictórios foram instalados logo se transformaram em lugares com aquele odor característico, incomodando um bocado. Deve ser por isso que também sumiram da paisagem da cidade. Enquanto isso, as empresas vencedoras das licitações de mobiliário urbano, aparentemente, ficaram desobrigadas de instalar os banheiros com boa tecnologia que faltavam. Continuam a explorar somente o filé mignon da coisa, ou seja, os equipamentos portadores de publicidade. E a população carioca, como sempre, permanece sem banheiros públicos.   

Mobiliário urbano é coisa séria, e dá a medida do conforto que a cidade oferece a seus usuários. E também precisam ser bem desenhados. Um visível retrocesso, por exemplo, são as torres de ventilação de câmaras subterrâneas de eletricidade. Antes feitas em ferro fundido decorado, agora são simples e feias chaminés em concreto. O Rio precisa de mais bancos de praça (que tal reproduzir os bancos Paris?), mais abrigos de ônibus, banheiros públicos, postes de iluminação decentes, quiosques, e coretos nas praças. Quando os teremos?

artigo publicado no Diário do Rio em 26 de maio de 2022.


Celulares ao lago

Theatro Municipal do Rio de Janeiro - foto Roberto Anderson
Uma voz anuncia os apoios oficiais, os nomes dos artistas principais e os cuidados em caso de emergência. A luz vai baixando aos poucos e lá do fosso da orquestra começam a subir os primeiros acordes da abertura. A música nos prepara, tensiona as emoções para o que virá a seguir. Está começando O Lago dos Cisnes, com o corpo de baile e a orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. 

São muitas as histórias e mudanças que cercam essa estreia. Dois anos de pandemia deixaram vazio o teatro recentemente restaurado, os artistas afastados uns dos outros, os técnicos em suas casas, sem poderem exercitar sua profissão, e o público saudoso. Quantos, lá e cá, de cada lado da boca de cena, não terão adoecido ou perecido? Agora é a hora do reencontro, de matar as saudades, de religar os refletores, de fazer soar os instrumentos. 

Há também as histórias pessoais dos artistas. Do menino que saiu de Cabo Frio e foi parar em Moscou, se tornando primeiro bailarino do Teatro Bolshoi. Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, ele se viu obrigado a tomar uma decisão drástica, saindo às pressas do país e da companhia que o acolheu, para se aventurar por outros palcos do mundo. Aqui, a cidade que ainda não o havia visto dançar, terá esse comovido reencontro com David Motta. E há a primeira bailarina, Claudia Mota, outro dia no comando da comissão de frente de uma Escola de Samba, agora transmutada em cisne. Sua emoção cresce, por ter anunciado que esta seria sua última temporada no papel de Odile-Odette.

Já conhecemos a história que irá se desenrolar diante dos nossos olhos. Mas o prazer de acompanhar esse drama sempre se renova. Sabemos que o príncipe recusará as pretendentes que lhe são sugeridas, sabemos que, ao se embrenhar na floresta, encontrará cisnes no lago e se encantará por um deles. Sabemos do feiticeiro e do engano a que o príncipe será levado. Mas queremos rever cada momento dessa trama, sentir a excitação do príncipe, o temor do cisne, sua hesitação, suas reservas sendo quebradas, e a sua entrega num dueto apaixonado. Tudo isso a bailarina nos transmite com pequenos gestos das mãos, pelo oscilar dos braços, pelo alçar das pernas e por leves meneios da cabeça. 

Nos alegramos pelo tão aguardado quarteto dos pequenos cisnes, suas pernas se movendo em rapidez e sincronia e suas cabeças circulando em conjunto. E pelos grandes cisnes que esvoaçam pelos quatro cantos do palco. E nos surpreendemos com as sutis mudanças de posição dos demais cisnes, que se enfileiram, viram de lado, esticam uma perna, mudam os braços, circundam o casal em redemoinhos e se entrecruzam em sintonia pelo palco. Da mesma forma, já conhecemos, mas queremos rever, as danças dos convidados do baile, as danças de caráter dos países. E o que dizer do bobo da corte, interpretado pelo sempre magnífico Cícero Gomes?  Ele encanta e cativa a plateia e demonstra uma técnica absolutamente invejável que empolga os que o assistem. 

Não menos bela é a música de Tchaikovsky. A abertura já é carregada de dramaticidade, mas também de romantismo. Sentimento esse que transborda, nos arrebata nos duetos do príncipe com Odette tornada cisne. Não há como não pensar na grandeza da cultura russa em contraposição com uma história de violências, jugo de tiranos, sonhos desfeitos de igualdade socialista e conflitos com povos vizinhos, como a atual guerra e suas barbáries.

Nesse longo período em que o público esteve afastado do querido teatro, além da falta do prazer de ver um espetáculo, parece ter havido também um processo de deseducação coletiva. Um grave sintoma disso é a insistência de tantos em consultar seus celulares durante o espetáculo. Novos selvagens, sequer desconfiam o quanto a luz azulada de seus celulares incomoda aqueles que tentam estar imersos no Lago. Não conseguem se concentrar na ação que transcorre no palco, ou experimentar em sua plenitude as sensações que dali emanam. Ação essa demasiadamente analógica, a exigir sofisticados níveis de interação emocional para quem tanto se acostumou a mensagens, áudios e vídeos de vida efêmera.

Também a chegada e saída do Theatro Municipal do Rio de Janeiro continua apresentando problemas que já poderiam ter sido superados. O projeto Área de Excelência Urbana, da Prefeitura, buscou no início de 2021 melhorar as condições físicas da Cinelândia, consertando pisos e mobiliário urbano, recuperando a iluminação pública e controlando a permanência de população de rua no local. Mas, em tão pouco tempo, muito disso já se perdeu. O público atravessa a praça às escuras, já que muitos postes estão com suas lâmpadas queimadas. Além disso, o metrô, surpreendentemente, fechou o acesso mais próximo ao teatro, obrigando as pessoas a caminharem até a esquina do Cine Odeon. Ao fim do espetáculo, em horário mais avançado, não é algo que deixe as pessoas muito felizes. Por sorte, a música que ainda ecoa nos ouvidos e a lembrança dos belos cisnes nos assegura a paz.

artigo publicado no Diário do Rio em 19 de maio de 2022.


O rapto do rio Carioca

Rio Carioca - foto Roberto Anderson
Muito antes de existir o gentílico carioca, existia o rio. E existiam os indígenas que habitavam o lugar e as lendas que envolviam suas águas. A da formosura, emprestada às mulheres que com elas se banhassem, é das mais cativantes. Há controvérsias sobre a origem do nome. Casa do homem branco? Derivado do nome de antiga aldeia Tupinambá? É difícil precisar. 

O curso do Carioca também sofreu alterações. Consta que, no passado, ele se abria em dois, uma perna indo em direção ao que hoje é a Glória e outra em direção à praia do Flamengo. Assim, o Catete ficaria numa ilha entre o rio e mar. Depois, suas águas foram desviadas para a linha de cumeada de Santa Teresa. Passavam pela Caixa da Mãe D'Água, desciam pela atual rua Almirante Alexandrino, até alcançar o aqueduto da Lapa e chegar ao largo, que passou a se chamar da Carioca. Lá, num generoso chafariz, os moradores da cidade coletavam água e lavavam suas roupas. 

As águas do Carioca ainda foram estendidas até o chafariz do Mestre Valentim, na Praça XV, vindo pela rua do Cano, atual Sete de Setembro, onde também abasteciam os navios. Atualmente esse lindo monumento se encontra seco, intrigando os passantes sobre a sua finalidade. No Largo da Carioca, o antigo chafariz foi substituído por outro, neoclássico, projetado por Grand Jean de Montigny. Mas esse também não resistiu à fúria demolidora do chamado progresso.

Com a necessidade de abastecimento de água para a cidade aumentando, foram buscar água bem mais longe, em Rio D'Ouro, e todo o sistema antigo ficou obsoleto. O reservatório do Carioca, em Santa Teresa, foi sendo desativado, as canaletas por onde a água seguia foram demolidas, o aqueduto virou viaduto para os bondes, e os chafarizes secaram. A água agora vinha diretamente da Baixada Fluminense para as torneiras das casas.

Com o tempo, o leito original do rio, no vale do Cosme Velho e de Laranjeiras, foi canalizado, ficando sob o trânsito intenso das vias daqueles bairros. Os olhos da população não viram as ligações de esgoto que foram sendo conectadas ao rio, e a vida que nele foi morrendo. Hoje, tudo o que não mais queremos passa pelas águas do Carioca. Ele ficou imprestável, feio de se ver, de cheiro ruim de se sentir. 

Há alguns anos atrás, uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) foi instalada próxima à sua foz, no Parque do Flamengo. Fazia parte da rendição dos governos à poluição dos nossos rios, tratando o problema lá na ponta, sem interesse em enfrentar a grande tarefa de despolui-los por inteiro, ao longo dos seus cursos. O Carioca, por muito tempo, permaneceu limpo enquanto atravessava a Floresta da Tijuca, poluído ao atravessar a área urbana, e parcialmente despoluído junto à sua foz. Assim, eram minorados os efeitos danosos do seu desague junto à praia.

Mais recentemente, a tal ETE foi desativada e, consequentemente, o rio, inteiramente poluído, provocou uma enorme mancha escura junto à Praia do Flamengo. Como solução, a nova concessionária do serviço de água e esgoto da cidade decidiu assumir, por conta própria, que o rio Carioca é mesmo uma galeria de esgoto, conectando-o à tubulação que segue até o emissário submarino de Ipanema. As águas do Carioca agora se misturam a toda a porcaria produzida por uma boa parte da cidade e vão desaguar anônimas e fétidas na altura das Ilhas Cagarras. O rio Carioca, que nasce límpido na floresta, não chega mais à sua foz. Desaparece no meio do caminho.

Tal decisão absurda não leva em consideração o tombamento do rio Carioca pelo Inepac, em 2019. Esse tombamento foi o primeiro de um rio urbano no Brasil e buscou representar um marco para o início da sua recuperação. Dali para a frente não mais seriam admitidas violências contra o Carioca e um plano para o seu manejo deveria ser proposto. Isso ainda não aconteceu, mas não significa que se possa desconsiderar o tombamento e fazer o que se queira com o pobre rio. Aqui no Rio de Janeiro, sem reação dos governantes, uma bolsa de valores foi fechada, assim como uma universidade, vigas de um viaduto desapareceram, e um rio está sendo raptado.

Nossas cidades precisam aprender a conviver com a natureza em que se inserem. Precisam manter as áreas verdes, acolher os animais silvestres e cuidar dos rios que as atravessam. O problema da poluição dos rios urbanos é gigante e desafiador. Mas é preciso começar a enfrentá-lo por algum ponto inicial. O rio Carioca, que nos deu nossa identidade, é o alvo ideal para dar início à grande jornada de recuperação dos nossos rios. Ele não pode continuar sendo misturado ao esgoto e jogado em alto mar. Concessionária Águas do Rio, vocês têm essa imensa responsabilidade. Os cariocas querem o seu rio de volta. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 12 de maio de 2022


Purgatório dos ciclistas

Criação comunitária de ciclovias em Amsterdam 1980
Nas últimas décadas, houve na Cidade do Rio de Janeiro um real crescimento da atenção à mobilidade ativa, com a construção de ciclovias, ciclofaixas ou ciclorotas. Para quem não está familiarizado com esses termos, ciclovia é a pista ideal, destinada a ciclistas, em faixa segregada de carros e pedestres. Existe, por exemplo, na orla de Ipanema e Copacabana. Aqui no Rio, patins ou praticantes de corrida são permitidos nas ciclovias. Ciclofaixa é uma faixa pintada sobre o asfalto ou calçada. Quando a ciclofaixa ocorre sobre esta última, há eventual compartilhamento do espaço com os pedestres. É a situação do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas e do Parque do Flamengo. E ciclorota é uma sinalização sobre o asfalto indicando um trajeto prioritário para o ciclista em meio ao tráfego de veículos.

No entanto, apesar de uma maior oferta de espaços para os ciclistas, acompanhada por uma explosão dos usuários de bicicletas na cidade, a vida do ciclista carioca nem sempre é fácil. As ciclovias são contadas aos quilômetros, para deixar a cidade bem nas estatísticas. Mas a sua manutenção é pífia. As que foram especialmente construídas para o uso a que se destinam não tiveram uma manutenção adequada, e se encontram com falhas na pavimentação, remendos grosseiros e perdas de blocos ou sinalizadores que as separam dos demais veículos. Aquelas, que apenas utilizaram um trecho da via já existente, incorporaram todos os defeitos do asfalto, como calombos, buracos e tampas de visita de instalações subterrâneas salientes. Da mesma forma, as ciclofaixas sobre calçadas padecem dos mesmos males que tanto incomodam os pedestres, ou seja, buracos, falhas na pavimentação e elevação da mesma pela ação de raízes de árvores.

Se esses problemas na pavimentação podem provocar quedas entre os pedestres, são também potencialmente perigosos para os ciclistas. A velocidade um pouco maior das bicicletas torna mais incômoda a trepidação provocada por uma pavimentação irregular. E um buraco que leve o ciclista ao chão pode ter consequências ainda mais danosas. Isso sem contar que a sinalização das ciclofaixas deixa de existir em certos trechos. Isso produz confusão entre pedestres e ciclistas, e coloca estes últimos à mercê de carros que saem de garagens. Já as ciclorotas são uma abstração para os motoristas dos demais veículos, que muitas vezes as utilizam para estacionamento em fila dupla.

Com ciclorotas ou não, o ciclista está sempre sendo espremido junto ao meio-fio por motoristas que desconsideram a indicação do Código de Trânsito de guardar a distância de 1,50m ao passar por bicicleta ou ultrapassá-la, o que caracteriza uma infração média, passível de multa. Quem multaria, se nem mesmo os guardas de trânsito parecem conhecer essa regra? Os motoristas devem também reduzir a velocidade dos veículos ao ultrapassar um ciclista, sendo a não observância desse item uma infração grave. Quem o faz?

O Artigo 58 do Código de Trânsito indica que as vias urbanas e rurais são adequadas à circulação de bicicletas, desde que não haja ciclovias ou ciclofaixas. Portanto, o ciclista tem os mesmos direitos de estar na via asfaltada que os demais motoristas. Mas isso não parece ser entendido ou aceito por grande parte dos mesmos. Os ciclistas são vistos como invasores das pistas, como estorvos, às vezes apenas tolerados, às vezes tratados agressivamente. Não raro, essa incompreensão resulta em atropelamentos, com ferimentos ou mortes.

A Prefeitura tem uma enorme responsabilidade e capacidade de implantar políticas que tragam segurança e conforto aos ciclistas. Do bispo não se podia esperar mesmo muita coisa. Mas a nova administração municipal já se encontra no seu segundo ano. Já é hora de mostrar real atenção à mobilidade ativa, cuidando das vias dos ciclistas e patinadores, assim como dos caminhos dos pedestres. Sabe-se que ela se vê como comprometida com a sustentabilidade. Mas é preciso mostrar isso na prática, em diversas áreas. Somente o sistema Bike Rio, de bicicletas compartilhadas, já superou a marca de um milhão de usuários. Portanto, o número de ciclistas cariocas é expressivo e ainda tende a crescer. A atenção a esses milhões de usuários de bicicletas na cidade é parte dessa boa política de sustentabilidade. Vamos a ela? 

artigo publicado no Diário do Rio em 05 de maio de 2022

O Buda da rua Santo Amaro

A rua Santo Amaro é uma daquelas ruas que saem da Glória e do Catete, em direção a Santa Teresa. Geralmente são mais calmas e possuem belos solares e sobrados. Alguns estão decadentes e depauperados, outros já foram renovados por novos proprietários. Há também prédios de apartamentos, construídos antes da valorização da ideia de se preservar o Patrimônio local.

Um desses solares, hoje bem maltratado, é o que serviu como sede social do High Life Club, um clube de festas, restaurante e local de animados bailes de carnaval no passado. Antes, havia sido da família do Barão do Rio Negro. Depois de abrigar o clube, o imóvel também sediou o Incra, mas não mais.

Na calçada desse solar, há um morador de rua, que se arrumou debaixo de uma árvore. Lá ele guarda suas coisas e tralhas, e dorme num burrinho sem rabo. Dorme tranquilo, muitas vezes em pleno dia. Veja bem, eu disse morador de rua, não um mendigo. Ele parece ter uma saúde invejável. Mantém relações sociais com os vizinhos, leva seu pequeno cachorro a passear, conversa com os clientes do bar, e presta pequenos serviços na redondeza. Seu burrinho sem rabo está há tanto tempo no mesmo lugar, que imagino que já tenha obtido seu próprio CEP.

Dia desses, ele foi chamar a atenção de um mendigo que revirava uma lata de lixo, deixando cair sujeiras no chão: Ôo, não vê que o rapaz acabou de varrer a calçada? Eu o vejo como o buda da Santo Amaro. Deve ter achado sua iluminação debaixo da árvore e lá ficou. Ou, aproveitando a antiga existência da sede do Incra, ali fez a sua pequena reforma agrária. 

artigo publicado no Diário do Rio em 28 de abril de 2022.