quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

A Rua da Vala

Rua Uruguaiana em 1993
A Rua Uruguaiana é parte do tecido mais antigo da cidade, tendo sido durante muito tempo o seu limite. Isto se deu durante os longos anos em que a cidade foi apenas um pequeno povoado entre quatro morros, adormecido no lento ritmo colonial. No início do século XVIII, para ali foi projetada a muralha que deveria defender a cidade após as invasões corsárias, e marcaria a fronteira entre a cidade e o campo. Como muitos dos nossos projetos, a muralha não foi adiante. Ali também existiu a vala que escoava as águas da lagoa existente onde hoje se encontra o Largo da Carioca, na difícil tarefa de drenar as áreas pantanosas da cidade. Por isso mesmo, foi chamada de Rua da Vala.

Sua posição de área quase externa à cidade era explicitada, também, pela existência da Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, dois protetores dos escravizados e negros libertos da cidade, que não conseguiram erguer sua igreja na área mais urbana. O Mestre Valentim e o músico Padre José Maurício estiveram ligados àquela igreja. Este último foi o celebrante da missa de ação de graças na Igreja do Rosário pela chegada de D. João VI e sua corte ao Rio de Janeiro. A ela compareceu o próprio príncipe regente, após cortejo vindo da atual Praça XV. Ali também, entre 1812 e 1825, funcionou a Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Em sua dinâmica de crescimento, desde o início do século XIX a cidade já havia ultrapassado as cercanias da antiga Rua da Vala, ocupando terras para além do Campo de Santana. A chegada da corte portuguesa fez surgir nas proximidades dessa nova área instituições importantes, como o Teatro São João, atual João Caetano, a Escola Politécnica, atual Ifics, e várias residências de nobres.

No início do século XX, os ventos de renovação urbana que alteravam a cidade, também chegaram à Rua Uruguaiana, levando ao seu alargamento. Dois lados distintos então se formaram. Um, mais baixo, com lotes mais estreitos e sobrados remanescentes do período anterior (o lado mais próximo à direção do mar). Outro, de lotes mais largos, com edificações de mais andares e mais imponentes, resultante da demolição e reconstrução de um dos lados.

A reedificação, iniciada em meados desse século, que passou por cima de quaisquer resquícios de história, trouxe para ali prédios Art Déco, outros de influência modernista, e outros, ainda, pós-modernistas. Estes últimos, em geral são os menos adaptados à linguagem arquitetônica ali dominante, como atestam painéis de vidros esverdeados, que lançam seus reflexos narcísicos sobre os edifícios vizinhos.

Após a construção do metrô, na década de 1970, a rua foi reconfigurada com um calçadão central e duas ruas de serviço laterais. Não demorou para que o descontrole do comércio ambulante, inflado pelo desemprego provocado pela crise econômica da década seguinte, levasse à completa ocupação das calçadas por barracas, que praticamente impediam o trânsito de pedestres. Tal situação perdurou até a década de 1990, quando o comércio ambulante da Rua Uruguaiana foi transferido para quatro terrenos remanescentes da obra do metrô, que se transformaram no Mercado da Rua Uruguaiana.

O mercado foi pensado para atender pequenos comerciantes, com módulos correspondentes às dimensões de suas antigas barracas de rua. Com o tempo, e a falta de controle público, ocorreu uma concentração dos espaços nas mãos de menos comerciantes, e uma certa especialização em produtos eletrônicos, às vezes de origem duvidosa. Também o calçadão central da Uruguaiana, deixado livre por um certo tempo, voltou a ser parcialmente ocupado por novos vendedores ambulantes, aqueles que não cabem no mercado agora mais elitizado e menos democrático. 

Artigo publicado em 17 de fevereiro de 2023 no Diário do Rio.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Cultura, negócios (e moradia) no Centro do Rio

O Centro ainda é a principal área de negócios do Rio de Janeiro. Durante várias décadas, passando por crises diversas, e tendo a concorrência de outras centralidades, ele assim se manteve. Em relação à Região Metropolitana, o Centro é privilegiado, servido pela mais ampla gama de meios de transportes da metrópole. Ali ocorre a maior concentração de equipamentos de cultura da cidade. E lá estão as sedes dos poderes legislativos e judiciário e vários órgãos do poder executivo.

Mas hoje, novamente, essa centralidade principal balança. O Centro já sofria as consequências de uma legislação, que um dia ali vigorou, baseada em princípios do urbanismo funcionalista, que impedia a construção de imóveis residenciais. Somente na administração Luiz Paulo Conde (1997-2001) essa legislação foi revogada. Mas, seus efeitos deletérios vêm perdurando apesar de tentativas em contrário. A especialização de boa parte do Centro como área de comércio e serviços resultou numa ociosidade e esvaziamento noturno, que traz perigo e a consequente recusa de circulação de transeuntes naquele horário. Não são raros os casos de assassinatos ou de pessoas feridas ali à noite por malfeitores à espreita. 

Na década de 1990, o Centro passou por um processo de requalificação, baseado na valorização dos espaços públicos e do Patrimônio, na atração de equipamentos culturais, e no ordenamento das atividades de rua, como o comércio ambulante. O sucesso de tais iniciativas se verificou pela atração, por exemplo, de estabelecimentos comerciais voltados para classes economicamente mais privilegiadas e de instituições de ensino superior. Mas essa requalificação dependia da continuidade dos cuidados com o espaço público, o que, por diversas razões, não ocorreu.

A pandemia de Covid, com o consequente fechamento de atividades e a larga substituição do trabalho presencial pelo trabalho remoto, mostrou-se fatal para uma região tão dependente do comércio e dos serviços. A ociosidade dos imóveis foi às alturas, com uma enorme queda no público que demandava o Centro no seu único horário de funcionamento. Já no período noturno, se agravou a situação de abandono, com a afluência de novos moradores de rua, ali jogados pela crise econômica.

O programa Reviver Centro, lançado na atual administração, visa corrigir a pouca atratividade do Centro para o mercado de construção de moradias. Com incentivos diversos, ele tem conseguido atrair projetos, e mesmo obras, para áreas periféricas ao coração do Centro, o seu Quadrilátero Financeiro. Este pode ser definido pelo polígono delimitado pela rua Primeiro de Março, a praça Pio X, a rua Gonçalves Dias e a avenida Nilo Peçanha. Após o período da Reforma Passos, no início do século XX, ali passou a haver o predomínio de instituições bancárias, financeiras, escritórios de advocacia e contabilidade e toda sorte de serviços complementares a essas atividades. Mas, até o momento, o Reviver o Centro não fez surgir propostas de empreendimentos habitacionais para esse core.

Recentemente, a Prefeitura da Cidade do Rio lançou um programa para incentivar atividades culturais no Centro, através da possibilidade do pagamento parcial do aluguel de lojas ociosas, com frente para ruas daquela área. Esse programa foi estabelecido através de um edital de chamamento público da Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos – CCPAR. O alvo deste chamamento público são lojas com interesse na locação para atividades “ligadas às áreas incentivadas pelo Município do Rio de Janeiro como aquelas de natureza cultural ou artística”.

No Edital publicado em 31 de janeiro de 2023, a área delimitada compreendia apenas o polígono do Quadrilátero Financeiro. No entanto, o novo edital do programa, publicado em 02 de fevereiro de 2023, incorpora uma pequena área da praça XV, área que há anos vem se caracterizando pela predominância de atividades culturais. O subsídio a ser concedido pelo Município tem o valor de R$ 75,00/m², limitado a um máximo de 192m², independentemente de que o imóvel tenha uma metragem maior.

Se o incentivo à abertura de novos estabelecimentos voltados para a Cultura na área da praça XV parece seguir uma vocação já presente, só o tempo dirá se isso terá sucesso também no Quadrilátero Financeiro. Ali sempre houve livrarias, e se imagina que elas possam ser enquadradas como atividade de natureza cultural, gerando a abertura de outras. Teatros e galerias de arte não há muitos na área. Que mais se enquadraria? Cafés-concertos? Lojas de instrumentos musicais? Escolas de teatro, dança ou música? São estabelecimentos que seriam benvindos, mas não é fácil alterar uma vocação local sedimentada por décadas. E há que se considerar que muitas dessas atividades culturais precisariam da segurança noturna, já que seus horários costumam ser estendidos. E segurança noturna é o que está em falta.

Uma área, cuja ausência no novo programa municipal de incentivo a instalações voltadas para cultura é incompreensível, é a Rua da Carioca. Ela, que já se caracterizou pela presença de lojas de instrumentos musicais, do Cinema Íris, do Bar Luiz, hoje fechado, e de livrarias, se encontra numa situação lamentável. São lojas e mais lojas fechadas. Ainda restaram algumas de instrumentos musicais, mas a rua está uma desolação. Incluí-la no programa de incentivo a estabelecimentos de cultura seria fundamental para a sua recuperação.

O novo programa da Prefeitura pode ser mais um estímulo importante para a chamada revitalização do Centro. A presença de estabelecimentos culturais poderá vir a ser um grande atrativo. E um enorme acerto está em privilegiar as lojas com frente para ruas, o que traria animação para as mesmas. Mas, se a área selecionada permanecer sem moradias, continuará a ocorrer o círculo vicioso do esvaziamento noturno e da falta de segurança. Como dito acima, até o momento, o mercado imobiliário não se mostrou encorajado a lançar um empreendimento imobiliário no coração do Centro. E a Prefeitura insiste na estratégia de oferecer mais vantagens e subsídios, como outra proposta que acaba de ser anunciada de ampliar as vantagens já oferecidas pelo projeto Reviver Centro.  

A Prefeitura poderia agir na restrição da oferta de licenciamentos em outras áreas da cidade não prioritárias, do ponto de vista do interesse público, para o desenvolvimento do mercado imobiliário. Ela poderia também ter uma estratégia de intervenção direta na área do Quadrilátero Financeiro, onde sequer houve projetos, com a conversão de alguns imóveis comerciais para residenciais, usando recursos públicos. O que se tem certeza, é que é preciso quebrar a inércia e ter famílias morando na avenida Rio Branco e adjacências, vizinhas de bancos e escritórios e, quiçá, de estabelecimentos culturais. 

Artigo publicado em 09 de janeiro de 2023 no Diário do Rio.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

A gestão do Patrimônio francês

Pont des Arts - foto Roberto Anderson
Tendo a França inspirado, de forma marcante, a cultura brasileira, vale a pena conhecer o desenvolvimento dos institutos de proteção ao patrimônio daquele país. Lá, a ideia de proteção a bens ligados à história surgiu com as turbulências da Revolução Francesa, quando se pôs abaixo o antigo regime. Em paralelo às drásticas mudanças, diversas vozes passaram a defender a proteção dos bens materiais daquele período, vistos como parte da identidade nacional. Com a revolução, veio também a estatização dos bens da nobreza, do clero, dos que fugiram e da coroa. Tudo isso constituía um imenso universo de bens, dos quais foi preciso selecionar aquilo que se considerava de valor histórico. Ainda em 1790, foi então criada uma comissão de monumentos, responsável por esse trabalho.

Posteriormente, em 1830, foi criado o posto de Inspetor Geral dos Monumentos Históricos, para o qual foi indicado o historiador e escritor Prosper Merimée, autor do conto que deu origem à ópera Carmen. Ele instituiu a Comissão de Monumentos Históricos, que em 1840 publicou uma lista com 934 edifícios que deveriam ser protegidos. Nove anos mais tarde, a Comissão já havia listado 3.000 bens a serem protegidos, um feito impressionante. Mas, somente com uma lei de 1887 essa classificação ganhou valor jurídico, gerando direitos e deveres para os proprietários.

Em 1927, uma lei estabeleceu um segundo nível de proteção, a inscrição, abaixo da classificação. Em continuação à evolução do interesse pela proteção do Patrimônio e à ampliação do arcabouço de bens a serem protegidos, uma lei de 1930 permitiu a proteção de sítios e monumentos naturais. É interessante notar que até então o Brasil não contava com uma legislação de proteção ao seu Patrimônio, o que veio a ocorrer com a criação do Sphan em 1937.

Ainda na França, em 1943, de forma a preservar a ambiência dos monumentos preservados, foi instituído um círculo de proteção de 500 metros ao redor dos mesmos, uma medida importante, mas pouco precisa. A compreensão de que o valor de certas cidades e Centros Históricos ia além dos monumentos preservados, residindo principalmente na coerência do tecido urbano no qual tais monumentos se inscreviam, levou à criação dos Setores Protegidos (Secteurs Sauvegardés) pela Lei Malraux, de 1962. Para cada setor, que substituiu o círculo de 500m de raio, devia ser elaborado um plano, detalhando o que havia a preservar ou a demolir, indicando inclusive elementos internos a serem mantidos como escadas e lareiras.

Mais tarde, a necessidade de se proteger as pequenas localidades rurais e sítios paisagísticos franceses, e o interesse em se estabelecer uma política urbana descentralizada, levou à criação em 1983 das Zonas de Proteção do Patrimônio Arquitetural, Urbano e Paisagístico (ZPPAUP). Nessas Zonas de Proteção, cuja proposição era local, os imóveis tinham seus tetos e fachadas protegidos, como nas Apacs do Rio.

Em 2016, uma nova lei substituiu os Setores Protegidos e as ZPPAUP pelos Sítios Patrimoniais Notáveis (sites patrimoniaux remarquables). Ali se propõe a proteção do Patrimônio arquitetônico, urbano e paisagístico de cidades, vilarejos ou bairros. Para tanto, devem ser elaborados planos de proteção e de valorização, que são mais voltados para o urbanismo, ou planos de valorização da arquitetura e do Patrimônio. Aqueles setores já reconhecidos pela lei anterior foram incorporados à nova proteção, que já engloba mais de 860 sítios ou conjuntos urbanos. 

Uma vez estabelecido os planos de proteção e de valorização, qualquer intervenção dentro do sítio protegido é submetida à avaliação de um arquiteto com a formação específica (architects des Bâtiments de France). Esse é um ponto importante: o Estado se encarrega da formação desses especialistas, gerando maior uniformidade de procedimentos com relação às intervenções no Patrimônio. Há também a possibilidade de vantagens fiscais e de subvenção para as obras.

Na França, como no Brasil, a manutenção do Patrimônio tem altos custos, sendo muito dependente da ação estatal. Naquele país, há também o recurso ao apoio da iniciativa privada, seja através de subscrições públicas com a finalidade de se obter doações para obras específicas, seja através do mecenato por empresas. As subvenções a restaurações levam em conta o uso futuro dos monumentos protegidos, sendo maiores caso os imóveis venham a ser abertos ao público.

Em diversas áreas protegidas, os trabalhos de recuperação dos imóveis destinados à habitação podem utilizar recursos advindos de um sistema de subvenções para melhorias das edificações de uso habitacional em geral. Tais subvenções advêm de taxas aplicáveis aos aluguéis habitacionais privados, às residências secundárias, e aos imóveis vazios, aqueles que não são habitados depois de um certo tempo. Tais taxas são transferidas à ANAH - Agência Nacional para a Melhoria do Habitat que as aplica na recuperação desses imóveis.

Outras iniciativas de financiamento da restauração vêm sendo pensadas. Em 2011, o castelo Chambord registrou sua marca e, desde então, comercializa produtos com a mesma. Outra possibilidade seria o uso em bens de Patrimônio do chamado ticket mecenas, um valor adicional e voluntário da entrada, já usado em museus para a aquisição de obras de arte.

Um aspecto importante é a formação de mão de obra especializada na intervenção em bens de Patrimônio, uma carência forte em qualquer lugar. A Prefeitura da cidade de Bayonne, por exemplo, teve um programa de formação gratuita de mão de obra especializada em recuperação de imóveis, com duração de seis meses, destinado a pintores, marceneiros, canteiros e pedreiros. Os alunos deviam ser profissionais já engajados em alguma empresa ou autônomos e os cursos eram mantidos pela Prefeitura e por fundos empresariais de formação.

Essa rede de recursos e incentivos destinados às restaurações dos imóveis preservados, sejam eles públicos ou privados, marca uma das grandes diferenças do sistema de preservação francês para o brasileiro. Até o momento, salvo alguns incentivos fiscais criados por certas prefeituras, entre as quais a do Rio de Janeiro, e a possibilidade de uso da Lei de Incentivo à Cultura, há poucas fontes de recursos para a recuperação dos bens preservados. No Rio de Janeiro, uma inovação interessante é o Pró-Apac, em que a Prefeitura subsidia parcialmente algumas restaurações de fachadas, estruturas e telhados, além da acessibilidade, considerando que os mesmos são parte da paisagem urbana.

Mas, na maioria dos casos, nossos tombamentos e preservações têm sido apenas documentos legais que não garantem a efetiva integridade dos monumentos. Com tristeza, vemos bens tombados ou protegidos se descaracterizarem ou ruírem, sem que haja ações do poder público ou recursos para a sua proteção. Somente uma maior conscientização sobre o real valor dos nossos monumentos, no campo e nas cidades, poderá levar os poderes públicos a repensarem seus papéis no contexto da preservação do Patrimônio cultural, criando novos mecanismos de financiamento, incentivos fiscais, incentivos a usos habitacionais e obrigações dos proprietários.

Artigo publicado em 02 de fevereiro de 2023 no Diário do Rio.