sexta-feira, 28 de julho de 2023

Dois teatros e muitas lembranças

Vestidos com ternos de uniforme, e fazendo um trabalho extra, os lanterninhas, que provavelmente são artistas ou estudantes, indicam às pessoas os seus lugares e as conduzem até lá. É aquele momento de grande excitação, pedidos de licença, trocas de olhares e observação de quem são os demais presentes no teatro. Casais conversam, senhoras leem os programas que lhes foram entregues e a constante chegada de mais gente anima o ambiente. 

Um grupo de jovens, rapazes e moças, todos magros, todos com jeito de bailarinos, buscam seus lugares no fundo, que é onde geralmente se situam as cadeiras distribuídas aos estudantes de dança e de teatro. Os aplausos mais animados ao fim do espetáculo, e os gritos dirigidos às estrelas principais, sempre vêm deles.

A luz do teatro baixa, os últimos avisos são dados e a orquestra, que afinava seus instrumentos silencia. O maestro adentra o fosso, aplausos antecipados lhe são oferecidos, e faz-se o momento de calma e expectativa pelo que virá. Os primeiros acordes da abertura de Romeu e Julieta, de Prokofiev, preenchem a sala. Dão início à construção da narrativa do grande e trágico amor que marcou Verona.

Estamos no Metropolitan Opera, que faz parte do Lincoln Center. No palco, a praça da cidade se enche de artesãos, mulheres trabalhadoras e outras festeiras. Patrícios, filhos das boas famílias, farreiam, galanteiam e se provocam, até que uma encarniçada luta de espadas toma conta de tudo. O som das lâminas, batendo umas nas outras, acompanha o ritmo acelerado da música. Soldados chegam para acabar com a confusão. 

De frente para a cena, lembranças vêm aos borbotões. O palco agora é outro, o do David H. Koch Theater ali ao lado, no mesmo conjunto cultural, mas muitos anos antes. O espetáculo é o mesmo Romeu e Julieta, com a mesma música, apenas o coreógrafo é diferente. Na coxia, o soldado que lidera um grupo de outros soldados, prontos para entrar em cena e desfazer a luta de espadas, sou eu. O papel é pequeno, o que se chama de comparsaria, mas a emoção é enorme.

Também pudera, aquele é um dos palcos mais respeitados do país, onde Balanchine brilhou com suas criações, a casa do New York City Ballet. A companhia da noite é o conhecido Joffrey Ballet e entrar em cena, qualquer que seja o espetáculo, é sempre emocionante. Nos momentos em que a cena pouco exige do figurante, é possível olhar a plateia, sentir sua respiração, ouvir sua reação ao que se passa no palco. Lá da galeria, alguém o estará fitando, por um instante esquecendo Romeu, e observando o soldado.

No ensaio geral as coisas não saíram a contento. Como, até ali, os soldados haviam ensaiado separados dos demais bailarinos, ao me deparar com a intensa e ruidosa luta de espadas à frente, refuguei, sustando a entrada poderosa da guarda que apartaria a briga. Bronca tomada do ensaiador, combinações acertadas, e a rota dos soldados voltou a fluir. No compasso certo, eles passam por debaixo de uma ponte cenográfica e, ante a sua presença, os brigões vão se afastando dando lugar agora ao Príncipe de Verona, que dará um ultimato às famílias, para que deem fim àquela disputa sangrenta. 

A temporada do espetáculo no teatro deve ter durado duas semanas, e a noite principal teve Marcia Haydée e Richard Cragun nos papéis principais. Mesmo sendo apenas um soldado, eu sabia que, dividir a cena com aqueles artistas, era algo para jamais esquecer. Antes que as cortinas se abrissem, um pouco acanhado, cheguei perto de Marcia e lhe confidenciei que também era brasileiro. Tietagem ligeira de quem se sentia ligado à estrela principal, só por ter a mesma nacionalidade. 

No palco do Met, o drama caminha para o seu desfecho. O desencontro levou Romeu a acreditar que Julieta está morta. Esta, ao acordar e ver que ele havia tirado a própria vida, por não poder viver sem seu amor, busca na adaga a morte que a unirá ao seu amado. Completa-se o destino trágico que o Bardo traçou para os jovens apaixonados. A plateia devolve aos artistas toda a emoção que eles lhe entregaram no palco. Gritos de bravo, urros e mais aplausos são dirigidos às estrelas principais. Os soldados não vêm para os agradecimentos. Fecham-se as cortinas.

Artigo publicado em 27 de julho de 2023 no Diário do Rio.

A cidade pulsa

High-Line - foto Roberto Anderson
É verão em Nova York. Há sol, muito sol. Calor já de crise climática. E pessoas nas ruas, muitas. Estão também nos parques e praças da cidade. Tomam sol nos gramados. Descontraídas, como se na praia estivessem. Nos bancos, aqueles corridos, bem característicos, casais namoram, idosos observam os passantes, jovens consultam o celular. Todos se juntam aos malucos que lá sempre estiveram. E também um coroa brasileiro cansado de bater pernas por aí. 

Há muita música, do jazz ao rap. Talentos que estiveram praticando em apartamentos, fechados durante o inverno, agora saem às ruas para ganhar uns trocados. E crianças brincam em seus espaços seguros. A vida corre solta nas ruas da cidade, como se nunca uma pandemia tivesse existido. O medo ficou no passado. Ninguém diria que existiu e que bateu com tanta força. Quem perdeu os seus, os guarda na lembrança. 

Há vasos floridos em esquinas, em calçadas, e pendurados nos postes. As praças, de vários tamanhos, em geral, são bem cuidadas. Vê-se que há um trabalho de jardinagem consistente e permanente. Há flores, flores e vegetações de cores variadas. Os arranjos paisagísticos, se não são os mais elaborados, são bastante simpáticos. Demonstram que há na cidade um corpo de jardineiros em trabalho constante. Em algumas praças, até canteiros de rosas há. Algo impensável na realidade carioca, cuja prefeitura deixou seus jardineiros envelhecerem e se aposentarem, sem substituição. 

Essa é uma cidade em que tudo sempre muda. O restaurante, onde se tomava uma sopa barata de shoyo, já não existe. Os punks do East Village também já não existem. Nem os latinos, nem os artistas pobres da Tompkins Square. Tudo é gentrificação. Do sujeito que, a exemplo do Selaron, ladrilhava a St. Marks Place, só sobrou uma ou outra base de poste recoberta por mosaicos. O senhor afegão que, muito antes de sabermos do Taliban, vendia umas quinquilharias naquela rua, também se foi.

Em muito poucos anos, os bairros trocam de roupa, e de personalidade. Se o East Village já não é underground, o Meat Market District ficou chic, o Brooklyn entrou na moda, e o Harlem agora é um lugar bastante misturado. Poucas são as permanências. Uma delas, a Capela de St. Paul, de 1766. E o vazio das torres do World Trade Center, onde águas correm continuamente para dentro da terra. 

Nova Iorque é cidade de passagem. Muitos vêm em busca do sonho artístico, outros fugindo de suas famílias e cidades conservadoras e homofóbicas, outros ainda para passar um tempo, enquanto ainda não sabem bem o que fazer da vida. É cidade boa para se ser jovem. Depois, eles se vão, sabe-se lá para onde. Quem sabe até para perpetuar o conservadorismo que um dia lhes oprimia. 

São poucos os que ficam para envelhecer. Se ficam, correm o risco da solidão. Por sorte, têm os parques. E os bancos corridos. E as memórias de dias agitados e animados. Como os que vivem os jovens moradores de agora. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 20 de julho de 2023.

Estrela Dalva de Paracuru

Farol de Paracuru - foto Roberto Anderson
Paracuru, no litoral do Ceará, é uma cidade de ventos fortes, que atraem para a cidade levas de praticantes de kitesurf e windsurfe, brasileiros e de outros países. Mas há lá algo, talvez mais valioso: a Escola de Dança de Paracuru. Ela é a grande e generosa realização do bailarino e professor Flavio Sampaio que, ao voltar para sua terra, decidiu criar uma oportunidade para as crianças e os jovens da cidade. Desde 2003, a escola vem contribuindo para o desenvolvimento artístico desses jovens, formando bailarinos, que já atuam em diversas companhias profissionais. 

Foi o interesse em ver esse projeto que me levou a Paracuru. Lá, conheci um grande personagem da cidade, um motorista viajado, que já rodou o Brasil e esteve em terras peruanas. Me disse que naquele país faz um friozinho que ele até apreciava, mas que com a idade já não gosta mais não. 

Numa prosa rica de entonações que cativam a atenção do ouvinte e que, por via das dúvidas, se vale de pequenos toques no braço do seu interlocutor, me explicou como a Estrela Dalva marca as estações do ano. Repare moço que hoje à noite ela vai nascer ali naquele canto, atrás da mangueira. Ela vai demorar uns meses pra chegar até lá em cima da lagoa. Quando isso acontecer, é o inverno, depois do dia de São José. E deve chover. Mas tem vezes que a estrela desce muito rápido daquele lugar. Aí lascou-se, é frio demais na Europa e o Japão se acabando em chuvas.

E mais me contou sobre La Niña e El Niño, mas aí já era outra história.

Artigo publicado em 13 de julho de 2023 no Diário do Rio.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

A cidade encolheu

foto Tania Rego - Agência Brasil

Dois anos após o momento em que deveria ter sido feito, o censo finalmente foi finalizado e seus surpreendentes resultados começam a ser liberados. A população brasileira cresceu menos do que se esperava, a população do Estado do Rio de Janeiro quase não cresceu (0,03%), e a cidade do Rio de Janeiro perdeu 109 mil moradores (-1,7%), figurando entre as nove capitais que também encolheram. Se, entre os dois censos anteriores, o crescimento populacional da cidade foi de apenas 0,079, agora houve redução.

O Rio não esteve sozinho. São Gonçalo perdeu 103 mil moradores, o que representou uma redução de 10,3% de sua população. Nilópolis vem em seguida, com uma redução de 6,8%. Petrópolis perdeu 5,8%, Duque de Caxias perdeu 5,5% e São João de Meriti perdeu 3,9%. Todos esses municípios estão na Região Metropolitana e a eles se juntam Niterói e Mesquita, também com perdas populacionais. Entre as diversas consequências das notícias trazidas pelo censo, está a redução do valor a ser repassado pelo Fundo de Participação dos Municípios, já que a população total de cada um deles interfere no valor a ser recebido. No caso das capitais, 10% desse fundo é destinado às mesmas, variando também em função da população. 

Fora da Região Metropolitana, houve perdas significativas em Paracambi, Barra do Piraí, Valença e Barra Mansa. Em sentido inverso, ocorreram crescimentos significativos nas populações de Maricá (+54,8%) e Rio das Ostras (+48,1%). Cresceram todas as cidades da Região dos Lagos e, entre outras, Nova Friburgo, Macaé, Carapebus, Seropédica, Resende, Porto Real e Parati.

Muito ainda terá que ser estudado para uma melhor compreensão dos movimentos populacionais que estão ocorrendo. Mas, alguns fatores parecem estar presentes, como a busca por locais com melhor qualidade de vida, maior empregabilidade e menos violência, tudo isso acelerado pelas possibilidades do trabalho remoto. 

Há muito se discute o fenômeno do encolhimento das cidades, ou shrinking cities. Essa seria a tendência de perda de população de certas cidades, especialmente aquelas onde ocorreram processos de desindustrialização, ou choques trazidos por mudanças bruscas, como ocorrido no Lesteuropeu após o fim dos regimes ditos socialistas. Regiões com baixas taxas de natalidade e pouca capacidade de geração de empregos também têm visto esse encolhimento. Mas, o censo nos informa que ocorreram processos em sentidos inversos no Brasil, tendo havido crescimento de cidades do Centro-Oeste. Isto indica a força da atratividade daquela região, inaugurada com a mudança da capital. Brasília teve um crescimento de 9,6%, Goiânia cresceu 10,4%, e Campo Grande 14,1%. São variações importantes entre os municípios mais populosos do país, somente ultrapassados pelos 15,3% de João Pessoa,

Já a cidade de São Paulo não teve redução populacional. Ao contrário, cresceu 1,8%. No entorno de São Paulo, também cresceram Campinas e Guarulhos, por exemplo. Muitíssimos cariocas conhecem alguém que tenha se mudado para São Paulo, especialmente se for da área financeira ou da economia criativa. Esse é um problema real. Se a cidade perde atratividade, pode estar formando mão de obra especializada que irá trabalhar em outros lugares, sem ganhar o correspondente em novos moradores. 

O ritmo do crescimento populacional brasileiro vem se reduzindo, tendo sido de 6,5% nos últimos 12 anos. É uma tendência, e vem ocorrendo de forma relativamente suave. Mas uma perda, como a ocorrida na cidade do Rio de Janeiro e em cidades vizinhas é um sobressalto, cujas causas e efeitos precisam ser cuidadosamente analisados. Que setores da população saíram das cidades? São pessoas em idade produtiva? Qual o seu nível de escolaridade e de renda? O impacto desse acontecimento no desenvolvimento futuro do Rio depende das respostas a essas e outras questões. Há que se adaptar também o planejamento da cidade, e da metrópole, a essa nova realidade, que pode ser permanente. Será preciso abandonar uma ótica voltada para a expansão, por outra mais preocupada com a contenção e a qualidade.

As gestões do Estado do Rio de Janeiro têm sido desastrosas e as gestões municipais, em geral, não têm sido melhores. Houve desindustrialização, perda de instituições financeiras, perda de empresas e empregos, aumento assustador da violência, e a consequente perda de poder político em Brasília. Um círculo vicioso parece ter se instalado, com a eleição de representantes políticos cada vez piores. É preciso encontrar um caminho para fora da espiral de decadência. 

Artigo publicado em 06 de julho de 2023 no Diário do Rio.