domingo, 31 de dezembro de 2023

Para um feliz 2024, se possível

foto Roberto Anderson

Em alguns dias será um novo ano. Se não déssemos tanta importância à contagem do tempo, talvez essa passagem não fosse tão marcante. Mas, assim somos. A chegada de um ano novo acaba sendo uma oportunidade de avaliar o que passou, de pensar no que pode mudar, e de ter propósitos.

O ano que vai acabando já mostrou alguns problemas que estarão no futuro. A crise climática continuará a extrapolar os debates acadêmicos, extravasando para as ruas na forma de ondas de calor sufocantes, de secas, de chuvas torrenciais que provocam enchentes cada vez mais dramáticas, e de aumento das áreas consideradas de risco. 

No mundo, a guerra deixou de ser fria, tornou-se disseminada, com as potências nucleares enfrentando-se por intermédio de terceiros. Ataques massivos por drones não são mais ficção. As imagens dos bombardeados, das crianças atingidas, dos desabrigados, dos exilados, dos forçados a emigrar nos comove e incomoda. 

Os extremistas de direita estarão à espreita para, na primeira oportunidade, tentar novamente destruir a democracia. A inteligência artificial, apesar de trazer benefícios, também nos fará duvidar do que vemos e ouvimos. Aquela pessoa impoluta poderá ter a sua imagem e voz clonadas, para cometer as maiores barbaridades. O vizinho do lado, ou o seu espectro, poderá lhe induzir a cair num golpe financeiro. 

O mundo parece estar ficando cada vez mais complicado. E todos esses são problemas muito grandes, cujas soluções não estão muito ao alcance de cada um de nós, cidadãos comuns. Mas, há atitudes que podemos tomar como propósitos para o novo ano que, se não resolvem as grandes questões, podem nos fazer um bem danado. Que tal uma pequena lista de ações ao nosso alcance?

Cuidar melhor de si, do que se come, renegar os ultraprocessados e os alimentos regados a agrotóxicos. Gastar mais tempo na cozinha experimentando novas receitas para servir à família e aos amigos. Por falar nestes, lembrar de ligar ou, vá lá, mandar mensagens para saber como estão. E dar um jeito de combinar um encontro, de preferência, vários ao longo do ano. 

Fazer caminhadas ou, se possível, corridas pelo menos duas vezes por semana. Não é muito. Voltar para a academia ou, para quem já lá está, manter-se firme, mesmo que os benefícios nem sempre apareçam no espelho como desejamos. Se a academia for insuportável, escolher nadar, jogar, quem sabe até competir. 

Aprender uma nova língua, que pode ser o mandarim, para melhor entender a nova potência do século XXI. Contrariando o senso comum, sempre é tempo de aprender. Mesmo que o aprendizado seja lento, a cabeça estará funcionando, a caixinha da memória estará sendo desafiada a expandir-se.

Lembrar que é o ano de eleger o prefeito ou a prefeita e os vereadores, aqueles que são responsáveis pela qualidade de vida nas cidades, ou a falta dela. Procurar entender quem são os candidatos, ouvir suas propostas e saber reconhecer ali o que são promessas vãs e o que merece credibilidade. Se possível, seria desejável escolher um bom candidato, melhor ainda se for uma candidata, com antecedência e, por que não, conseguir alguns votos para quem merecer a sua confiança. 

Plantar uma árvore (essa é velha). Mas se não for possível fazer isso, ligar para a Prefeitura, procurar na Internet o órgão responsável por plantios, e pedir, reclamar, exigir que seja plantada uma bela muda naquele espaço vazio na calçada, que os urbanistas chamam de golas. Melhor ainda, quando for fazer aquela caminhada ou corrida da promessa lá de cima, anotar as golas vazias do seu bairro e repassar os endereços para a prefeitura. 

Ler mais nas folhas de papel dos livros, ver mais filmes do que novelas, ir a mais festas do que a cultos, ir mais vezes ao teatro, porque lá os atores e os bailarinos esperam para apresentar um evento único, que não será igual ao do dia que passou, nem aos vindouros. Viajar mais, se possível, com baixa pegada de carbono. 

Namorar, se der, amar. Reencantar-se com pessoas e atividades que andavam parecendo enfadonhas. Abraçar os filhos, os irmãos, os pais, os avós e os amigos. Querer mais vida, mais anos novos, mais surpresas agradáveis, mesmo sabendo que as desagradáveis também virão. Ter coragem para seguir na corrente do tempo, sempre à frente, sem parar. Feliz Ano Novo. 

Artigo publicado em 28 de dezembro de 2023 no Diário do Rio.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A Usina dos italianos de Porto Real

 

Porto Real é uma cidade do Sul fluminense, com aproximadamente 20 mil habitantes, que sedia a fábrica da Peugeot Citroën, atual Stellantis. Até 1995, era parte de Resende. Mas, lá no passado, foi a localidade de Minhocal. Por ter tido uma porção de terra doada à coroa, na qual havia um desembarcadouro às margens do rio Paraíba do Sul, tornou-se Porto Real. 

No final do século XIX, ela recebeu um grupo de colonos italianos que, supostamente, deveriam ir para Santa Catarina. Mas eles teriam preferido ficar por ali mesmo, já que gostaram do lugar. Esses colonos trabalharam duro, plantaram cana-de-açúcar e, para beneficiar essa produção, foi inaugurada em 1889 uma bela edificação projetada por arquitetos franceses, que veio a se chamar Açucareira Porto Real. Além da importância afetiva por ser parte importante da história local, o edifício é um dos cartões postais da cidade. É uma bela edificação industrial, em alvenaria de tijolos aparentes, com um corpo mais alto, em cuja fachada estão incrustados um relógio e um oratório. 

A antiga usina assemelha-se em tipologia a outros edifícios industriais preservados, como as antigas fábricas de tecidos Bangu, o Moinho Fluminense e a Companhia Têxtil Brasil Industrial, esta última em Paracambi. Inexplicavelmente, a antiga Usina, depois fábrica da Coca-Cola, até hoje não é tombada, nem tem qualquer proteção legal. Mas, isso não lhe retira importância e a necessidade de ser preservada. Já faz muito tempo que os edifícios industriais do século XIX, e mesmo do século XX, entraram no radar dos órgãos de Patrimônio, que vêm buscando preservar esse período da história humana. 

Em maio deste ano, parte da fachada desabou, um acontecimento triste e deplorável, por evidenciar falta de cuidado. A parte desabada corresponde a uns 15% da edificação, portanto, a sua recuperação é perfeitamente possível e desejável. No entanto, a absurda solução encontrada pela Coca-Cola foi encomendar um projeto que parta da demolição total do que restou e reconstrua a edificação como um pastiche do prédio histórico existente. Sim, é isso mesmo, querem demolir o prédio histórico para reconstruí-lo como cenário. 

Após esta ação danosa, criminosa mesmo, de demolição do que ainda resta de pé se concretizar, a empresa planeja reconstruir a volumetria do edifício utilizando alvenaria de bloco de concreto, com pilares pré-moldados. Posteriormente, toda fachada da nova edificação seria revestida com tijolinhos cerâmicos, similares aos tijolinhos maciços existentes na estrutura atual, que não são apenas um revestimento. As janelas e as portas da nova edificação teriam as mesmas medidas das atuais, mas seriam fabricadas em alumínio.

Quem imaginaria que a Coca-Cola promoveria algo fake, não é mesmo? Essa solução é inadmissível, e contraria todos os cânones de gestão de bens culturais. O Ministério Público deveria olhar esse caso de destruição do Patrimônio de Porto Real e impedir que a demolição do que ainda existe se concretize. Os cidadãos de Porto Real deveriam se indignar com a destruição da sua história. E o órgão de Patrimônio estadual, o Inepac, deveria agir, antes que seja tarde demais. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 21 de dezembro de 2023. 

 

sábado, 16 de dezembro de 2023

Nerds na Portuária

Apesar de suas políticas urbanas que ameaçam a paisagem carioca e a qualidade de vida dos cidadãos, o prefeito do Rio acertou ao trazer a graduação em matemática do Instituto de Matemática Pura e Aplicada-IMPA para a Área Portuária. O IMPA Tech funcionará num galpão da Prefeitura, dividindo espaço com startups e empresas de tecnologia, na avenida Professor Pereira Reis. Apesar de estar devendo mais explicações à sua vizinhança no Horto sobre as obras de edificações ali na encosta florestada, o IMPA fez um golaço ao criar essa graduação.

A Área Portuária, mesmo com todos os investimentos ali já realizados, não tem recebido atividades que gerem movimento e atraiam público. Isso se deve ao modelo de urbanização trazido pelo projeto Porto Maravilha. Ele é baseado em índices de aproveitamento dos terrenos e possibilidade de altas edificações, sem um plano de massa que imagine o resultado final, sem reserva de terrenos para habitação, sem espaços para o pequeno comércio, e voltado para um público de mais alta renda. Público este que, até o momento, tem desdenhado da área, continuando apegado à Zona Sul e à Barra.

Financiada pelo governo federal, a futura graduação do IMPA oferecerá até 100 vagas por ano para alunos selecionados em todo o país, buscando trazer para o Rio aqueles que demonstrarem vocação e aptidão para o raciocínio matemático. Eles receberão uma ajuda de custo e alojamento providenciado pela Prefeitura, em apartamentos que a mesma adquirirá na área. Apesar do folclore de terem características de pessoas mais absortas no seu mundo de equações, a presença desses alunos vivendo e estudando no coração da Área Portuária terá uma grande capacidade de vitalizá-la, bem mais do que os empreendimentos voltados para escritórios ali já realizados. 

A criação do curso do IMPA tem também a característica de ir ao encontro de uma das grandes vocações da cidade, a de ser um polo de produção de saber, aberto a estudantes e a pesquisadores de todo o país. Existe no Rio outra instituição de ensino com um papel semelhante ao que terá o IMPA Tech: o Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil do Senai, o Senai Cetiqt. Ele tem sedes na Cidade Universitária e na Barra da Tijuca e também recebe estudantes de várias partes do país, oferecendo alojamentos para os que vêm de fora. 

O Senai Cetiqt é o maior centro de produção de conhecimento na área têxtil e de confecção, incluindo a moda, e na área química. E está no Rio de Janeiro. As universidades públicas de excelência aqui situadas também têm essa capacidade de atrair para o Rio estudantes de outros lugares. Numa outra área do saber, mas não menos importante, a Escola Nacional de Circo, na Praça da Bandeira, é também uma instituição nacional, que recebe alunos de outros estados. 

Juntamente com o poder de atração das atividades culturais que aqui acontecem, e não se pode perder de vista o papel da Rede Globo nesse aspecto, todas essas instituições são responsáveis por manter o Rio como cidade de todos os brasileiros. A presença, mesmo que temporária, desses recém-chegados evita que a cidade caia num provincianismo, próprio de locais pouco abertos ao diferente. O Rio é lindo e os cariocas são ótimos. Apesar de a cidade estar meio perdida, o seu potencial é imenso. Não é tão difícil encontrar que caminhos seguir. 

Artigo publicado em 14 de dezembro de 2023 no Diário do Rio.

sábado, 9 de dezembro de 2023

A cura

Robert Smith

Era o início da década de 1980. O trabalho de garçom, num restaurante perto da Washington Square, era um dos vários bicos que a vida de artista sem recursos em Nova York oferecia. O lugar era bonito, tinha paredes decoradas com grandes espelhos barrocamente emoldurados. O que mais chamava a atenção era o bar, com suas estantes torneadas, de novo os espelhos, dezenas de taças penduradas, e a enorme variedade de bebidas expostas. 

O restaurante, que já não existe, era bem frequentado. Muitas pessoas que iam assistir peças no Public Theater ali perto, antes jantavam no Garvin's. Foi o que fez Jackie Onassis certa noite, gerando uma ciranda de garçons passando perto da sua mesa. Numa tarde de salão vazio, lá também esteve Rod Stewart. Desacompanhado, tomou com calma a sua bebida, sem ser importunado por ninguém. 

A maioria dos garçons era de jovens. Alguns estudavam teatro, outros dança, apesar de também haver imigrantes em busca do sonho americano. O uniforme era calça preta, camisa de smoking branca, gravata borboleta vinho e sapato social. Mas, havia tolerância para tênis preto, se fosse de couro. 

A formalidade pretensiosa do Garvin's era o oposto da vida de cada um dos que lá trabalhavam. Nos momentos mais calmos, as conversas giravam sobre os projetos de vida, notícias de suas casas distantes (ninguém em Nova York parece ser de lá) e pequenas gozações com a cara de cada um. O sotaque dos estrangeiros era um prato cheio para isso.

Era o tempo em que a AIDS crescia assustadoramente e pouco ainda se sabia sobre ela. Todo mundo tinha algum amigo ou conhecido tocado pela doença e isso desestabilizava, gerava medo. Eram também os tempos dos governos reacionários de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, confirmando que sim, o sonho havia acabado. Apesar de tudo, o mundo pulsava com a sensação de que a vida estava por um triz. Tudo mudava, e não se sabia bem para onde ia. 

Foi num momento de preparação do salão para o jantar que o barman colocou pra tocar uma fita do The Cure. Era uma batida forte e com muita melodia, a voz angustiada e sufocada de Robert Smith exalando revolta. As letras absurdamente sombrias e desesperançadas eram a cara do momento. Boys don't cry. Na capa, estava estampado o visual gótico. Identificação e paixão imediatas. Guardado o nome na memória, na primeira possibilidade a fita cassete foi devidamente comprada, passando a ser ouvida over and over. 

Os perrengues da vida num país estrangeiro, os dias de frio, o sair para o trabalho com o dia escurecendo, porque é assim no inverno, os desencontros amorosos, mas também as conquistas, as descobertas, os progressos, tudo podia ser pontuado pelo romantismo estranho, pela melancolia ou o niilismo do The Cure. 

De volta ao Brasil, apesar da claridade ambiente, os tons sombrios da banda continuavam a fazer sentido. Era como se o batom borrado agora o fosse pela ação do sol e do suor. Tentar rir disso, it's Friday, I'm in love seguiu batendo forte. A fita cassete ainda existe, mas já não há mais onde tocá-la.

Agora, em 2023, a Thatcher se foi, o Reagan idem, o mundo segue em crise, mas o The Cure continua. E fez um lindo show em São Paulo.

Artigo publicado em 07 de dezembro de 2023 no Diário do Rio.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A Traviata


Enfim, chegou o dia de assistir à ópera. Mais do que isso, vinte e dois anos depois, enfim, La Traviata volta ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Muito tempo de ausência de uma obra desse porte numa cidade que se acredita um polo cultural. Longe vão os tempos de bonança da Fundação Teatro Municipal, quando o casal de governadores da terra do chuvisco concordava em dotá-la com um orçamento até maior do que o da própria Secretaria de Cultura. Coisas curiosas aconteciam então. 

Para chegar ao Municipal, civilizadamente, boa parte do público opta por utilizar o metrô. Infelizmente, essa preferência não é recompensada pela administração desse sistema de transporte, que fecha a entrada mais próxima ao teatro nos fins de semana. Isso obriga senhoras e senhores, em seus melhores trajes, a se deslocarem pela praça mal iluminada, com aspecto de abandono. Nesta temporada da Traviata dois cantores, que haviam acabado de participar do espetáculo, foram agredidos por assaltantes na Cinelândia.

No último fim de semana, a bela chegada ao teatro esteve obliterada por uma enorme tenda dedicada a atender pessoas que desejavam limpar os seus nomes, renegociando dívidas. Nada contra tal atividade, mas somente gestores incultos permitem esse tipo de equipamento gigante na vizinhança do principal conjunto de monumentos da cidade: o próprio teatro, a Câmara de Vereadores, a Biblioteca Nacional e o Museu de Belas Artes. O que dizem os órgãos de Patrimônio?

Apesar de ter negada a visão, a partir da praça, dos vitrais iluminados do teatro, das suas colunas coríntias, dos seus ornatos e da imponente águia dourada, subir a escadaria externa do Municipal é sempre uma grande emoção. Ali estão os grupos de senhoras vindas em vans que as retiram do provável isolamento que advém com a idade. Ali estão representantes da elite econômica carioca, tanto os que genuinamente apreciam um bom espetáculo, quanto aqueles que ascenderam mais recentemente e sabem o quanto pega bem assistir a uma ópera. 

Dispersos pela escadaria também estão os amantes do canto lírico que necessitam ver ao vivo as óperas que tanto amam, da mesma forma como necessitam do ar que respiram. E também estão os artistas, e outras pessoas sem recursos, e sem acessos a convites, desejosos que um anjo apareça e lhes ofereça um ingresso que tenha sobrado. Lugar tão familiar no passado...

Adentrar o Theatro é uma experiência de maravilhamento. Mármores e pedras de tons variados, bronzes, esculturas, ornatos folheados a ouro, tudo muito rico, tudo muito nobre, a mais bela joia da cidade. A subida da escadaria central, com sua finalização bipartida, seus corrimãos de ônix, e o grande vão acima, terminado num vitral ladeado por pinturas, é sempre um ato que confere charme e grandeza ao mais simples dos mortais. Na era das redes sociais, essa subida se tornou incontornável, assim como a devida parada para fotos. 

O que os frequentadores justamente maravilhados não percebem são as microfissuras nos mármores das paredes e dos pisos, resultado provável da trepidação provocada pela circulação do metrô e da antiga situação de tráfego intenso de ônibus na lateral do teatro. Afinal, as fundações dessa magnífica edificação são toras de madeira de lei, submersas no lençol freático da região. Essa trepidação, e a movimentação do edifício, já causaram, muitos anos atrás, a queda da balaustrada do foyer. Tudo agora restaurado, não há motivos para preocupação, não há riscos iminentes, só "sinais de expressão" de uma longa existência. 

Se o espectador foi curioso, antes de entrar na sala de espetáculos, terá dado uma circulada pelo interior do teatro. E terá se deparado com o belíssimo foyer, onde a abóbada de berço e os tímpanos são decorados com pinturas magníficas de Eliseu Visconti. A pintura principal é a representação da música e utiliza técnicas de pontilhismo.

Se desceu a escada certa, terá encontrado o Salão Assyrio. A fantasia palaciana europeia agora abre espaço para um misto de referências à Pérsia, à Babilônia e à Assyria. Estão lá arqueiros, leões, os kerubs, que são seres alados, e fontes com Gilgamesh e o imperador Dario, tudo em cerâmica esmaltada, executada por finíssimos artesãos do passado. Uma pena que parte do teto, no lugar de ter a pintura decorativa recomposta, recebeu apenas um adesivo fotográfico na última restauração, a de 2008-2009. 

Antes do início da função, e devidamente sentado, se possível nos assentos privilegiados da plateia e do balcão nobre, o melhor a fazer é observar as belezas da sala de espetáculos. À frente, o belo arco dourado que contorna a boca de cena, com seus medalhões e laços contendo feixes canelados. Na lateral, antes da boca de cena, estão os camarotes da presidência da República e do governador. Não têm bom ângulo de visão, mas estão em locais privilegiados para que os dignitários sejam vistos. Abaixo deles, os camarotes que se debruçam sobre o fosso da orquestra. Na última restauração foram cortados para dar mais espaço à orquestra, mas não tiveram seus ornatos recompostos.

Acima, a pintura também de Visconti para o friso do proscênio, datada de 1936, quando a boca de cena original foi alargada. Por trás da pintura que decora o proscênio, há outra escondida, do mesmo artista, feita para a boca de cena original, apenas redescoberta na última restauração. No mesmo momento em que ocorreu o alargamento da boca de cena, a estrutura interna do teatro, em pilaretes metálicos, foi substituída por outra em concreto armado. Vigas gigantes de concreto agora passam escondidas por cima do plafond da sala de espetáculos, delicadamente decorado com a pintura As Horas, de 1908, do mesmo Visconti. 

Já toca o terceiro sinal, o espetáculo vai começar. A luz da sala se apaga, os músicos dão a última afinada nos instrumentos, o maestro, sob aplausos, assume o seu lugar no fosso da orquestra, e soam os primeiros acordes. A produção está muito bem cuidada, com o coro, o ballet e a orquestra em ótima forma. A soprano Ludmila Bauerfeldt, no papel de Violetta Valéry, encanta. Os figurinos e as coreografias idem.

No segundo ato há uma certa estranheza com a simples cortina com plantas trepadeiras fazendo as vezes da casa de campo do casal de enamorados. Bem distante do suntuoso cenário da última produção, quando havia um belo jardim na casa de Violetta. Foi por ele que o então médico de plantão no palco do teatro se equivocou de caminho, e adentrou a cena. Curiosidades de um palco centenário.

Também a inversão temporal do último ato, quando Violetta é apresentada como uma visão fantasmagórica, já falecida, cria um certo estranhamento em relação ao que é cantado, onde ela ainda tem um sopro de apego à vida. Talvez, uma concessão do diretor ao expressionismo alemão, assim como a dançarina de braços desnudos que aparece no segundo ato, na cena em que a protagonista é destratada por Alfredo. 

Ao final, a plateia oferece seus aplausos calorosos e merecidos aos artistas. Num ato incomum, são chamados ao palco alguns trabalhadores dos bastidores. Lá estão, entre outros, Leila, a chefe das camareiras e Divina, a responsável pelas perucas das personagens. É justo, sem eles não há espetáculo. E sem mais óperas, concertos e ballets o Rio é menos Rio. Obrigado Theatro Municipal, queremos mais.

Artigo publicado em 30 de novembro de 2023 no Diário do Rio.

domingo, 26 de novembro de 2023

Árvores, mais árvores

Árvore em Jaboatão dos Guararapes

Apesar dos negacionistas climáticos, a recente onda de calor pela qual passamos não deixa dúvidas: a crise climática, ou emergência climática, está aí. Segundo o Inpe, em 60 anos os dias com ondas de calor no Brasil pularam de sete para cinquenta e dois. Como o estudo cobriu o período 1961-2020, atualmente esses valores já podem ser maiores. 

O calor excessivo maltrata e, como se viu no show da Taylor Swift, pode provocar mortes. Toda essa nova realidade traz enormes desafios, para os quais ainda não estamos preparados. A adaptação envolve desde buscar novas regras para eventos que produzam aglomerações a relocar moradias situadas em áreas sujeitas a inundações e ao avanço do mar.

Além da adaptação, serão também necessárias ações chamadas de mitigação. São aquelas que buscam reduzir as emissões dos gases de efeito estufa ou capturá-los. O plantio de árvores é uma ação duplamente benéfica, já que capta CO² da atmosfera e fornece sombra e umidade, ajudando a baixar localmente a temperatura. Nossas cidades precisam de mais parques, mais praças e mais ruas arborizadas. Arborizar intensamente as cidades é tarefa urgente!

No Rio de Janeiro, os bairros da Zona Sul e da área litorânea da Zona Oeste, apesar de sempre poderem melhorar, são razoavelmente arborizados. Certas ruas de Ipanema e Copacabana são cobertas por um dossel contínuo de árvores, uma coisa linda de se ver do alto. Mas, ao nos dirigirmos à Zona Norte e aos bairros interiores da Zona Oeste, a arborização urbana vai rareando, havendo diversas ruas em que não existe uma única árvore. Não à toa, são nesses bairros onde ocorrem as mais altas temperaturas. Segundo a Sociedade Brasileira de Arborização Urbana, a cidade tem um déficit de aproximadamente um milhão de árvores. Cordovil, Santa Cruz e Bangu seriam os bairros onde essa carência é mais aguda.

Se, no quesito arborização urbana, a situação da Cidade do Rio de Janeiro não é boa, quando se olha para a Baixada Fluminense ela é de deserto quase total. A Casa Fluminense divulgou o estudo Mapa da Desigualdade 2023 que traz as medições de áreas verdes por habitantes. Apesar de não ser igual ao índice de arborização urbana, tais informações dão pistas sobre a situação da mesma. São João de Meriti é o município em pior situação, com menos de um m² de área verde por habitante. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o índice mínimo seria de 36 m² por habitante. Nilópolis conta com apenas 1,29, Belford Roxo com 5,36 e Queimados com 19,36 m². Já a Cidade do Rio de Janeiro conta com 49,61 m², um índice alto, mas enganoso, por conter as áreas florestadas da cidade. 

O primeiro plano diretor para a Cidade do Rio de Janeiro, realizado na década de 1920 pelo francês Alfred Agache, previa um sistema de parques para a Zona Norte. Em relação ao Patrimônio o plano seria desastroso, mas os diversos parques propostos teriam sido muito benéficos para aquela área. Sem o plano Agache, é preciso um plano que amplie drasticamente as áreas de parques nos bairros da cidade, especialmente naqueles mais quentes. Parques mais generosos do que o Parque de Madureira que, apesar de bem-vindo, é estreito, já que ocupa a antiga linha de transmissão da Light. 

Atualmente, o processo de arborização das ruas da cidade ocorre de forma quase artesanal. Há empresas contratadas para fazer esse plantio, mas o ritmo não é o adequado a uma situação de emergência climática. Há a reposição, um pouco deficiente, das árvores que caem e há o plantio de novas mudas em espaços já disponíveis. No entanto, menos de 30 mudas são plantadas a cada dia. Se a cidade fosse bem arborizada, isso não seria um problema. Mas, no ritmo atual, ainda levaremos quase 150 anos para que, talvez, vejamos a cidade razoavelmente suprida de árvores. E ainda há que se lembrar que o crescimento das mudas é lento e o vandalismo é alto. Uma inflexão radical no ritmo de arborização da cidade se faz urgente. 

A Prefeitura precisaria também exigir que novas edificações reservassem espaços nas calçadas para o plantio de árvores, já que a tendência geral é tudo pavimentar. E seria interessante considerar aspectos paisagísticos, como a formação de conjuntos arbóreos com forte expressividade. A predominância de certas espécies em algumas ruas, como os paus-ferros da avenida Pedro II ou a aleia de sapucaias da Quinta da Boa Vista, cria belos efeitos, reforça a identidade desses lugares e conquista a simpatia dos moradores. 

Outro aspecto a ser considerado é a relação da arborização com monumentos e edifícios considerados Patrimônio. No Castelo, por exemplo, uma área densamente arborizada em frente à Igreja de Santa Luzia quase impede a sua visualização. Na Praça XV, junto ao Chafariz do Mestre Valentim, há alguns anos uma árvore tombou, danificando seriamente o mesmo. Pois outra árvore foi plantada no mesmo lugar, planejando-se o possível desastre de algumas décadas à frente. Até a República, a área do chafariz não era arborizada. Assim como não são desejáveis bancas de jornais na frente de bens tombados, não deve haver arborização que os esconda ou ameace.

Por fim, é bom lembrar que, se quisermos o bônus de pássaros na cidade, é preciso o plantio de acordo com as suas necessidades. Há pássaros que buscam sementes e outros que buscam frutos. A variabilidade das espécies a serem plantadas deve atender a isso: produção de sementes e de frutos. Queremos árvores, precisamos de mais árvores. Que venha o milhão de árvores que nos faltam!

Artigo publicado em 23 de novembro de 2023 no Diário do Rio.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Ao clube do coração, tudo

 

Estádio do Vasco São Januário - 1927 

Durante muitos anos, os arquitetos e urbanistas, e todos que se interessam pelos destinos das cidades brasileiras, lutaram pela melhoria das legislações incidentes sobre os espaços urbanos. Isto porque os interesses do capital imobiliário sobre o solo urbano impediam que predominasse uma ótica mais voltada para o bem comum, a justiça social, a preservação do Patrimônio e do meio ambiente. Finalmente, com o Estatuto das Cidades, a Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001, abriu-se a possibilidade de que tais princípios fossem incorporados ao direito urbano nacional.


O Estatuto das Cidades trouxe a definição da função social da propriedade, relativizando um pouco o conceito de propriedade e exigindo que o solo urbano, não importando quem seja seu proprietário, deva servir ao bem dos cidadãos que compartilham o mesmo espaço urbano. Assim, por exemplo, terrenos eternamente vazios, à espera de uma futura valorização deixam de ser aceitáveis. Os municípios passaram a ter instrumentos para induzir o seu aproveitamento. 


O Estatuto das Cidades instituiu diversos novos instrumentos de legislação urbana, como o usucapião urbano, a outorga onerosa do direito de construir, o IPTU progressivo, o parcelamento ou edificação compulsórias, o Estudo de Impacto de Vizinhança, e as operações urbanas consorciadas, as OUCs. Estas últimas devem estar de acordo com as definições do Plano Diretor, e devem ter como finalidade "alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental". Visam, portanto, obras públicas e melhorias no espaço público.


As intervenções conhecidas como Porto Maravilha são uma típica OUC. Os gabaritos dos terrenos daquela área foram elevados, gerando um novo potencial construtivo, o qual foi posto à venda para financiar as intervenções na estrutura urbana da Área Portuária. É possível discutir se a elevação dos gabaritos foi excessiva, se houve pouco cuidado com o Patrimônio e a paisagem local, e se as obras realizadas foram de qualidade. Mas, os recursos advindos das alterações nos gabaritos geraram recursos que vêm sendo investidos naquela própria área.


Tome-se agora o projeto de lei enviado pelo prefeito carioca à Câmara de Vereadores, que institui a OUC do Vasco da Gama (Projeto de Lei Complementar nº 142/2023). Ela é voltada para beneficiar um clube esportivo, que, por coincidência, é o clube do coração do prefeito. E ela tem vários senões que a caracterizam como uma operação não aceita pela legislação. 


Salvo algumas intervenções no espaço público exterior, a maior parte dos recursos auferidos pela operação serão usados para a ampliação do estádio do clube, uma entidade privada, e na melhoria do seu parque aquático. Vale lembrar que, atualmente, o Vasco da Gama é controlado pela 777 Partners, um grupo norte-americano. Nada mais distante do estereótipo de clube de origem popular cultuado pelos torcedores. 


Para gerar esses recursos, é definido um potencial construtivo sobre um terreno já edificado. Tal edificação, por ser um estádio de futebol, tem uma área gramada, naturalmente livre. O que a operação proposta faz é imaginar que essa área gramada, e alguns espaços livres no entorno do estádio, seriam passíveis de receber edifícios, o que geraria um valor adicional ao complexo.


Como, obviamente, não se pode edificar no gramado do estádio e nem no seu entorno imediato, o projeto de lei propõe a transferência desse potencial construtivo, artificialmente criado, para outros bairros. Isto é denominado transferência do potencial construtivo, instrumento também previsto no Estatuto das Cidades. No entanto, a associação desses dois instrumentos numa mesma operação é perversa, porque um bairro fica com os recursos auferidos, e seus possíveis benefícios, enquanto outros recebem a pressão de um maior adensamento. 


A venda dessa metragem quadrada virtual irá impactar alguma outra área da cidade e os lucros serão transformados num estádio maior, capaz de gerar mais renda para o clube. Não está no Plano Diretor a indicação de que a ampliação do estádio do Vasco da Gama é benéfica para a cidade. Não há previsão no instrumento Operação Urbana Consorciada que outras áreas fora do perímetro da mesma sejam impactados por pretensas melhorias na área da OUC. Não há no projeto de lei previsão de controle compartilhado com representação da sociedade civil, como previsto no Estatuto das Cidades. 


Se houver uma expansão da moda de beneficiar clubes de futebol com a admissão de um potencial construtivo sobre seus gramados, poderemos ver os bairros da cidade impactados pelo que poderia ser construído no gramado do Flamengo, do Fluminense, do Bonsucesso, e de outros tantos que existem por aí. Além disso, é possível que venha aí o novo estádio do Flamengo, no terreno do antigo gasômetro, pertencente à Caixa Econômica, sobre construções que mereceriam ser preservadas. E depois, quem sabe a venda do potencial construtivo do gramado do novíssimo estádio.


A verdade é que o Estatuto das Cidades, elaborado com tantas esperanças positivas, está sendo torcido e retorcido para abrigar operações fora do interesse geral. Por maior que seja a torcida de um clube de futebol, ela não é o conjunto da população, fator que deveria nortear os projetos urbanos.


Vale lembrar que, quando dois botafoguenses ocuparam o governo do estado e a prefeitura, respectivamente Marcelo Alencar e Cesar Maia, um terreno na Praia de Botafogo, ganhou a possibilidade de receber um edifício. Isso permitiu que a mineradora Vale devolvesse ao Botafogo a sede de General Severiano, que ela havia adquirido do mesmo clube, e aceitasse em troca o terreno então valorizado no Mourisco. Como se vê, a paixão pelos clubes do coração opera milagres na legislação urbana.


Artigo publicado em 16 de novembro no Diário do Rio.


terça-feira, 14 de novembro de 2023

Como o Rio perdeu uma universidade

Em 2021 o prefeito Eduardo Paes promoveu a desapropriação do campus da antiga Universidade Gama Filho-UGF. Infelizmente, um pouco tarde, já que essa foi uma ação pedida ainda na década passada, pela maioria dos deputados estaduais, por professores e por estudantes. Visavam tentar salvá-la como instituição de ensino. No último fim de semana, depois de anos de abandono, quatro prédios da Gama foram implodidos pela Prefeitura, entre eles o edifício sede, projetado pelo arquiteto Edison Musa, e as instalações do antigo teatro Dina Sfat. Parte do campus deverá ser transformado num centro de educação e cultura da Fecomércio, e a outra parte num parque municipal.

A UGF teve sua origem no Colégio Piedade, comprado em 1939 por Luís da Gama Filho, futuro Ministro do Tribunal de Contas do Distrito Federal, depois de uma carreira política. Muito antes disso, Gama Filho foi motorista de caminhão e vendedor de querosene. Em 1951, com a abertura do curso de Ciências Jurídicas, teve início a história da universidade. Em 1965, surgiu o curso de medicina e logo vieram os de engenharia, arquitetura, comunicação social, odontologia, serviço social, educação física, além de cursos de mestrado e MBA. 

Muitos bons profissionais dessas áreas lá se formaram. Seus cursos eram bem considerados. Na educação física, por exemplo, a Universidade teve grande projeção, já que investiu em esportes de alto rendimento, participando de campeonatos estaduais e federais. 

Em 2010 a UGF foi comprada pelo Grupo Galileo, que também se tornou proprietário da UniverCidade, e mais tarde foi acusado de ter desviado milhões de reais. Em 2011, a universidade chegou a anunciar investimento de 17 milhões de reais na área esportiva. No entanto, dois anos depois a qualidade do seu ensino foi questionada pelo MEC, o que impediu a entrada de novos alunos e a elaboração de novos contratos do Fies e de financiamento de bolsas do Prouni. 

Em 2014 ocorreu o descredenciamento da Universidade pelo MEC, um golpe mortal, que levou ao seu fechamento. As avaliações mais detalhadas das instituições de ensino superior pelo MEC foram ações bem-vindas, mas, muitas vezes, como também ocorreu com a Santa Úrsula, ajudaram a empurrar para o abismo instituições que já vinham com problemas financeiros.

O encerramento das atividades da Gama Filho provocou gigantescos problemas para os alunos às vésperas de se formar, para os que, mesmo formados, ainda não tinham recebido seus diplomas e para os demais, que precisaram buscar a conclusão de seus cursos em outras instituições. A universidade era importante demais para o bairro de Piedade e para a Zona Norte. Para aquela área, ela tinha o peso simbólico que a PUC tem para a Zona Sul. Seus milhares de alunos movimentavam negócios no bairro, que entraram em crise com o fechamento da instituição.

Buscando uma solução para o enorme problema que se formava, em 2014 o então deputado Jorge Bittar propôs a desapropriação da estrutura da Gama para a criação de uma universidade pública. Naquele mesmo ano, o deputado Paulo Ramos apresentou projeto nesse sentido, que foi vetado pelo governador Pezão. 

Em 2016, ano em que o Tribunal de Justiça decretou a falência do grupo Galileo, a Alerj aprovou novo projeto permitindo ao governo desapropriar o campus da Gama Filho, ainda com o intuito de torná-lo uma universidade pública. O projeto era da autoria dos deputados Paulo Ramos e Waldeck Carneiro e seria uma solução que, além de atender o interesse público, era aceita pelo grupo mantenedor da instituição.

Como nossos governantes são bem obtusos, o governador Pezão, demonstrando o seu desinteresse nesse tipo de solução, voltou a vetar o projeto de lei aprovado na Alerj. Esse segundo veto do governador foi derrubado pelos deputados, mas mesmo assim o governo não tomou nenhuma providência. Naquele ano, o atual prefeito do Rio estava no seu segundo mandato, portanto já bastante experiente. Mas, tampouco se moveu para evitar o fechamento da universidade.

É difícil aceitar que uma cidade como o Rio de Janeiro, e o Estado do Rio, tenham podido assistir ao fechamento de uma universidade, ainda mais uma do porte da Gama Filho, sem que os governantes nada tenham feito. Agora veio mais uma implosão. A do viaduto da Perimetral gerou uma área de lazer, mas a absurda implosão da antiga fábrica da Brahma só gerou um elefante branco plantado junto ao Sambódromo. O futuro parque e o centro de recreação e cultura poderão trazer benefícios a Piedade e vizinhança, e serão melhores do que um terreno abandonado. Mas, nunca terão o potencial de transformação de vidas que uma universidade tinha. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 10 de novembro de 2023.

sábado, 4 de novembro de 2023

O passado favelado do Leblon

Alterações no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas - Atlas Canabrava

 

Ipanema e Leblon se alternam na posição de bairros com o maior valor do m² na Cidade do Rio de Janeiro. Se o primeiro convive com o conjunto de favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, o Leblon é um bairro sem nenhuma comunidade do gênero. Mas, nem sempre foi assim. Engana-se quem só conhece o seu presente glamoroso, cenário das tramas novelescas que retratam a burguesia carioca. Aqui, os bairros da classe média quase sempre têm alguma favela por perto.


A Barra da Tijuca, por exemplo, cresceu guiada por um projeto urbanístico do poder público, na segunda metade do século XX, e pela ação do mercado imobiliário. Mas, esse crescimento foi acompanhado do surgimento de favelas no Recreio e em Jacarepaguá. Da mesma forma, Ipanema e a orla do Leblon cresceram a partir de loteamentos formais, respectivamente do fim do século XIX e do início do XX, mas acompanhados do surgimento de favelas nas áreas próximas à Lagoa Rodrigo de Freitas. 


Praia do Pinto, Largo da Memória e Ilha das Dragas foram favelas expressivas no Leblon, ou na sua fronteira com Ipanema, mas já não existem. No lugar da primeira, foi erguido o condomínio Selva de Pedra. O Largo da Memória é agora um terreno militar à espera de um empreendimento imobiliário. E a Favela das Dragas, que existiu diante do Clube Caiçaras, não deixou vestígios. 


Essa concentração de favelas na parcela Norte do Leblon talvez se explique pela dinâmica da ocupação do bairro e por sua geografia, agora muito modificada. De fato, a ocupação dessa área da Zona Sul se deu por dois vetores. Um, que vinha de Botafogo, passando por Copacabana, via Túnel Velho, chegando à restinga dividida ao meio pelas águas que extravasavam da Lagoa Rodrigo de Freitas. Nessa área surgiram os loteamentos que conformaram os dois bairros. O de Ipanema, com quadras mais alongadas no sentido da praia, e o do Leblon, com quadras mais longas no sentido mar-lagoa.


O outro vetor de ocupação saía de Botafogo em direção ao Jardim Botânico. Mas, logo encontrava obstáculos, como o próprio Jardim Botânico, e a lagoa, que alcançava aquele parque e a atual Praça Santos Dumont. Assim, a área nos "fundos" do Leblon era alagadiça e de difícil acesso. Quem, senão os mais pobres, toparia ocupá-la? É sabido que as áreas sujeitas a alagamentos ou deslizamentos são as que restam para a ocupação das famílias mais pobres.


A favela do Largo da Memória teve uma remoção precoce, em relação às demais remoções. Ela ocorreu em 1941, sob o comando do prefeito Henrique Dodsworth, nomeado interventor no Distrito Federal durante o Estado Novo. Uma parte dos seus moradores foi transferida para o Parque Proletário n° 1, na Gávea, onde hoje se encontra o estacionamento da PUC. Esses, depois, passaram a morar no conjunto habitacional Minhocão, de Affonso Eduardo Reidy. Outra parte dos moradores foi transferida para o Parque Proletário n° 3, junto à Praia do Pinto, vindo a ter uma pior sorte.


A favela da Ilha das Dragas já era ocupada desde a década de 1950, mas foi removida em 1969. Seus moradores foram transferidos para a Cidade de Deus e para a Baixada. O terreno onde existiu a favela desapareceu, mas o Clube Caiçaras cresceu...


A favela da Praia do Pinto abrigava uma população de 15 mil pessoas no momento em que desapareceu. Os planos para sua remoção já estavam em curso, quando ocorreu um incêndio de origem suspeita, em maio de 1969. Os barracos arderam como prédios em Gaza, o que apressou a sua remoção. Tal incêndio ocorreu um dia após o DOPS ter prendido as principais lideranças do local. Os moradores foram transferidos para conjuntos habitacionais em locais distantes de onde viviam, como Cordovil e a Cidade de Deus, assim como para abrigos da Fundação Leão XIII, órgão estatal que cuidava de desabrigados. Apenas uma parte dos moradores da Praia do Pinto conseguiu permanecer no Leblon, graças à iniciativa de Dom Helder Câmara de edificar a Cruzada São Sebastião.


Todas essas remoções foram acompanhadas de aterros da Lagoa Rodrigo de Freitas e de áreas pantanosas no seu entorno, gerando terrenos que foram entregues a clubes recreativos que lá estão até hoje. Muito antes disso tudo, foi no alto Leblon que existiu, no final do século XIX, o chamado Quilombo do Leblon, uma chácara produtora de flores que abrigava escravizados fugidos. Se no presente o bairro é chic, no passado foi uma área bastante popular. Mas quem quer lembrar?


Artigo publicado em 02 de novembro de 2023 no Diário do Rio.


domingo, 29 de outubro de 2023

O mercado manda

Imagine-se o presidente Lula convidando Marina Silva para ser a Ministra do Meio Ambiente e, em seguida, lhe informando que o licenciamento ambiental não estaria no seu ministério. Imagine-se o IBAMA, e toda a sua capacidade de fiscalizar desmatamentos, fora do Ministério do Meio Ambiente. Imagine-se que as licenças ambientais fossem emitidas pelo Ministério de Desenvolvimento Econômico. Bastante absurdo e disfuncional, certo? Pois foi isso que o prefeito do Rio fez, não só com a área ambiental, mas também com a área do urbanismo.

Ao assumir esse seu terceiro mandato, Eduardo Paes esvaziou as secretarias de Meio Ambiente e de Urbanismo das suas funções de licenciamento ambiental e urbanístico. O prefeito atendeu aos anseios dos grandes empresários, que sempre reclamam dos limites impostos pelas regulamentações referentes ao uso do solo urbano e à proteção do meio ambiente. Criou, então, uma secretaria especializada em acelerar licenciamentos, sem o constrangimento do que pensam os formuladores daquelas políticas setoriais.

A Secretaria de Meio Ambiente que o prefeito entregou ao PT veio capenga, incapaz de opinar sobre a conveniência de empreendimentos na cidade do ponto de vista ambiental. O mesmo aconteceu com a Secretaria de Urbanismo. Ela ficou incapaz de gerenciar os licenciamentos de edificações na cidade. Não faz o menor sentido que os órgãos específicos da área não tenham ingerência sobre o que acontece lá na ponta.

Um bom exemplo de como é importante a integração entre o planejamento das políticas urbanas e o licenciamento é o caso do Morro Dois Irmãos, no final do Leblon. Toda a vasta área daquele morro, que se vê das praias de Ipanema e Leblon, era propriedade privada e já contava com uma licença para edificação de um hotel e dois edifícios. O então Secretário Alfredo Sirkis, percebendo o terrível impacto que tal projeto teria na paisagem carioca, propôs ao proprietário a troca de lugar do potencial construtivo do seu terreno. E assim se fez, a metragem quadrada destinada a enfear a paisagem da orla foi acomodada em um terreno na Barra. E o morro foi reflorestado.

Ora, se o Secretário não tivesse ingerência sobre o licenciamento, a única lógica a presidir a análise daquele empreendimento teria sido o frio parâmetro da legislação, que acolhia aquela barbaridade. Do ponto de vista do mercado estava tudo certo, mas a cidade perderia muito.

Nesta gestão do prefeito Paes, os licenciamentos estão na alçada de Chicão Bulhões (Francisco Siemsen Bulhões Carvalho da Fonseca). Ele é advogado, eleito deputado estadual pelo Partido Novo e, até onde se sabe, sem vinculação acadêmica, nem com a área ambiental, nem com a do urbanismo. 

A Secretaria Municipal de Urbanismo, apesar de cortada de grande parte de suas funções, inicialmente vinha sendo gerida pelo arquiteto Washington Fajardo, o qual foi depois substituído pelo respeitadíssimo arquiteto Augusto Ivan. No entanto, no último dia 06 de outubro as funções do urbanismo, que ainda se encontravam na secretaria específica, foram transferidas para a secretaria comandada por Chicão Bulhões. Esta secretaria passou então a se chamar Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico.

Assim, as questões referentes à formulação das políticas urbanas da cidade, nesta gestão, passam definitivamente a serem vistas pela ótica do desenvolvimento econômico. É o mercado ditando as regras urbanas, como já vem ocorrendo com toda a nova legislação urbana encaminhada à Câmara de Vereadores nos últimos tempos. Paisagem da cidade? Conforto e qualidade dos bairros? Para que, se sempre cabe mais um prédio com apartamentos a serem oferecidos a investidores? Não é só na segurança pública que o Rio não vai bem...

Artigo publicado em 26 de outubro de 2023 no Diário do Rio.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Rio favela

Manguinhos - foto Roberto Anderson

O Rio é uma cidade maravilhosa. Mas, é também complicada. A ela cabe, como uma luva, a expressão atribuída a Tom Jobim de que o Brasil não é para amadores. Para Zuenir Ventura, uma cidade partida. Para moradores de outros estados, uma cidade violenta, onde se é assaltado, sequestrado ou morto a qualquer descuido. Com certeza, cidade bagunçada, onde ônibus não param nos pontos, motoristas não respeitam sinais e amam parar em fila dupla, e agendamentos de horários são ficções. Mas, também, cidade onde desconhecidos dão bom dia, e o garçom, ou o atendente do bar, podem ser os seus melhores amigos.

O Rio tem bairros que o Brasil inteiro conhece. São cantados em pérolas da nossa música. Suas paisagens e recantos são cenários das novelas, assim como são a moradia dos atores que nelas brilham. O Rio tem artistas de diversas áreas. Eles passeiam por aí e o carioca faz que é natural, deixando o escândalo para os paparazzi. 

No Rio nasceram as favelas e aqui elas prosperaram. Segundo o Censo de 2010, seriam 763 localidades, abrigando aproximadamente 1,4 milhão de habitantes, ou 22% de toda a população da cidade. Como há anos não existem políticas municipais de habitação social, essa proporção só tende a aumentar. Há aquelas favelas bem pequenas e discretas, há aquelas supernovas, que não existiam no ano passado, e há as supergrandes, com a alcunha de complexos. 

Como os bairros da cidade, as favelas são bastante diferentes entre si. Algumas têm vistas privilegiadas e moradores gringos, outras são escondidas até para os serviços públicos. Umas estão nas partes altas dos morros, com riscos de deslizamentos, outras nas áreas planas, inundáveis, junto às beiras dos rios, das lagoas, ou da baía. Mas em uma coisa todas se parecem: estão dominadas por grupos armados, seja do tráfico, seja da milícia.

Os endereços nas favelas nem sempre têm logradouro e número, mas isto é compensado pela sonoridade e inventividade de sua nomenclatura. Novelas são uma grande fonte de inspiração ao se nomeá-las. São, inclusive, marcadores da época do seu surgimento e do grande crescimento da cidade em direção à sua Zona Oeste. É o caso da Sangue e Areia (1967) em Bangu, da Bandeira II (1971) em Del Castilho, da Cavalo de Aço (1973) e da Rebu (1974) em Senador Camará, da Te Contei (1978) em Parada de Lucas, da Final Feliz (1982) na Pavuna, da Roque Santeiro (1985) no Itanhangá, da Pantanal (1990) no Recreio, da Renascer (1993) no Tanque, da Salsa e Merengue (1996) em Ramos, da Uga-Uga (2000) em São Cristóvão, e da Boogie Woogie (2014) na Ilha do Governador. 

É bom lembrar que o fenômeno pode ocorrer também no asfalto, como o condomínio Selva de Pedra, no Leblon, construído onde antes existiu a favela da Praia do Pinto. A Globo tem mais capacidade de influenciar essa nomenclatura do que outras redes de TV, havendo inclusive a favela Criança e Esperança, em Guadalupe. Brevemente, poderão surgir aquelas com os nomes das novelas bíblicas, em voga nas outras emissoras. 

Mas, sendo a criatividade uma marca popular, nomes curiosos surgem com as mais variadas inspirações. O que dizer da Kinder Ovo em Ramos? E da Rato Molhado no Engenho Novo, da Cachorro Sentado em Vargem Grande ou da Piolho no Tanque? Algumas parecem advertir o visitante, como a Pé Sujo em Cordovil, a Buraco Quente em Senador Vasconcelos, a Mata Quatro em Guadalupe, e a Vala do Sangue em Santa Cruz. 

Não faltam as que homenageiam personalidades, como a JK no Andaraí, a João Goulart em Higienópolis, a Tancredo Neves na Taquara, a César Maia em Vargem Pequena, a Clara Nunes no Rio Comprido, a Tom Jobim na Pavuna, e a surpreendente Maestro Arturo Toscanini na Ilha do Governador.

Como a proteção do divino nunca é demais, há trinta e uma favelas com nomes de santos. A Barra da Tijuca, bairro emergente, tem poucas favelas, entre elas a São Tillon. Mas, em se tratando de Barra, não surpreende o fato de ser um santo não encontrado nas listas dos santos católicos. Há ainda a Cristo Redentor em Anchieta, a Sagrada Família na Tijuca, a Sagrado Coração em Santa Cruz e mais seis Nossas Senhoras. 

Há favelas com nomes inspirados em outras paragens, algumas distantes, como a Coréia em Senador Camará, a Baleares em Cavalcante, a Everest em Inhaúma, a Luanda em Guaratiba, a Budapeste na Ilha do Governador e a Malvinas em Irajá. Nessa lista, também se encaixa a Disneylândia em Brás de Pina. É sobre fantasia, mas é uma terra! Há também as que se referem a lugares novos. São dezesseis essas promessas de recomeço, como a Novo Palmares em Jacarepaguá.

Nas primeiras décadas do século XX, a proposta de cidade-jardim de Ebenezer Howard gerou uma febre de empreendimentos imobiliários para as classes média e alta, nomeados como jardim. Eles buscavam aplicar os princípios de mais espaços, mais áreas verdes e menor densidade daquela proposta. Exemplos disso são os bairros elegantes de São Paulo da região dos jardins. Como o pobre tem direito de sonhar e também ter o seu jardim, no Rio de Janeiro, são vinte as favelas com nomes de jardins e trinta e cinco as denominadas parques, como a Parque Jardim Beira Mar em Parada de Lucas. O detalhe é que diversos aterros levaram o mar para bem distante daquele jardim. Se não há propriamente jardins, há noventa vilas, como a Vila dos Crentes em Vargem Grande. Umbandistas seriam bem-vindos?

A mesma poesia contida na música Chão de Estrelas (...a lua furando o nosso zinco salpicava de estrelas nosso chão) aparece nos nomes de diversas favelas cariocas. É o caso da Pedacinho do Céu em Cordovil, da Chácara do Céu no Vidigal, da Raio do Sol em Guadalupe e da Pôr do Sol em Santa Cruz. Há aquelas que prometem Sossego, uma em Senador Camará e outra em Madureira. Tem a Recanto Familiar no Humaitá e até mesmo o paraíso, como a Shangrilá na Taquara. Se é pouco crível, talvez a Prazeres em Santa Teresa sugira uma felicidade mais terrena. Seguindo essa senda, há a Primavera em Cavalcante, a Verde é Vida em Senador Camará e a Beco da Esperança no Engenho de Dentro. Mas nada se compara à Relicário em Inhaúma, cujo nome sugere delicadeza e acolhimento, como toda moradia de gente deveria ser.

Artigo publicado no Diário do Rio em 19 de outubro de 2023.

domingo, 8 de outubro de 2023

Mais amores

foto Fellipe Sampaio
O hino nacional nos parece bonito. Mas, seria bonito por ser o nosso hino, ou seria ele genuinamente bonito? Veríamos nele beleza porque sempre o cantamos, não sendo razoável que cantássemos os de outros povos? Talvez não seja só por isso. Muitos veem imensa beleza na Marselha, o hino francês. Ela arrebata e quase nos engaja, apesar de seus trechos xenófobos e violentos. 

Em nossas vidas, volta e meia entoamos o hino nacional. Alguns mais velhos o fizeram em formação, no pátio da escola, outros nos estádios, ou diante dos televisores ligados no início dos jogos de futebol. Nesses momentos, ele é cantado de forma vigorosa. E à capela, acelerado, na segunda parte, que os organizadores dos torneios insistem em sonegar. 

Nos estádios, o hino nacional é como a sequência de movimentos e caretas maoris dos neozelandeses, a demonstração de força que pretende assustar os adversários. Já nas solenidades oficiais, ele é uma gravação que, de tão conhecida, parece ser regido pelo próprio Francisco Manoel da Silva. A cadência, algo marcial, seria fruto da longa ingerência militar na vida nacional?

Mas, vendo Maria Bethânia cantá-lo, temos a certeza de que nosso hino é bonito. Ela desliza pelas notas, fazendo-as permanecer um pouco mais em suspenso. Bethânia vai além da música, que tem seu mérito e até já rendeu obra sinfônica. Ela resgata a beleza das palavras que, muitas vezes, repetimos automaticamente. Ouvimos dela com calma, e renovado encantamento, que nossos bosques têm mais vida, que nossos campos têm mais flores, que nosso céu é risonho e límpido, onde o Cruzeiro do Sul resplandece. Que, à luz desse céu profundo, e ao som do seu mar, fulgura nosso país, florão da América. 

Pela voz de Bethânia lembramos do sonho de que esta seja uma terra adorada, uma mãe gentil, qualidade que quase esquecemos diante da rudeza das vidas desvalidas e do rugir dos enganados pelo populismo raivoso. No amor renovado pela Pátria, seja lá o que entendamos por isso, nos dispomos a demonstrar que um filho dessa terra não foge à luta. E chegamos ao auge de declarar não temer nossa própria morte!

Com doçura, Bethânia canta berços esplêndidos, lábaros, flâmulas, clavas e braços fortes. Em sua voz, entre outras mil, esta é a Pátria amada. Patriazinha diria Vinícius de Moraes. Ouvindo Bethânia, o amor e a esperança a esta terra desce. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 05 de outubro de 2023.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Buraco 467

 

foto Roberto Anderson

Eu moro no buraco, no buraco de número 467. A entrada, meio fora de esquadro, tá pintada de verde. Quero dizer mais ou menos pintada né, que um pouco de esperança nunca faz mal. Ao sair da rua, eu vou descendo escadas que o diabo talhou e a luz do dia vai ficando pra trás. A minha casa (ou será minha toca?) é lá pelo meio, onde o ar já escasseia e os insetos passeiam livres, donos do lugar. 

Quem começou a construir a nossa casa foi a bisa, quando era moça e tinha forças para lavar roupa pra fora. Minha avó trocou as madeiras por tijolos e meu pai bateu a laje que me cobre e as que estão acima. A bisa dizia que antes tinha vista, e que era bonita. Podia ver o mar e as pedras. E os poucos carros que passavam lá embaixo. Depois, os vizinhos foram construindo de qualquer jeito e a luz do dia foi desaparecendo da nossa janela. 

Aqui é assim, um constrói tapando a vista do outro, fechando a entrada de ar, e ganhando nova vista na laje de cima. Que também será tapada pelo puxado do vizinho, que acabou de bater uma laje nova. Não tem regra, vale a lei da necessidade. Foi assim desde o começo. Quando a bisa chegou, assentou suas madeiras numa clareira que abriu na mata que estava livre, acima dos barracos já construídos. E outros vizinhos foram chegando, fazendo a mata recuar cada vez mais, até quase desaparecer lá pra cima. 

Todo mundo constrói usando o que consegue comprar e com os conhecimentos que tem. Um que trabalha em obras diz quantos ferros tem que usar. O concreto é no sentimento, e na sabedoria, porque acho que aqui todo homem já esteve em obra. E todos ajudam a virar o cimento e assentar os tijolos. Bonito não fica, mas também não cai. Era bom se tivesse orientação de engenheiro, de arquiteto. Há até uma lei sobre isso, de assistência técnica a quem precisa construir. Mas aqui ela não chegou. 

A minha luz é de gato. Gato que os caras do movimento estão querendo cobrar. Estão aprendendo com os milicianos. Antes ela era legalzinha e tal. Eu usava a conta pra comprovar o endereço e poder fazer crediário. Mas agora nem adianta, tô encalacrado mesmo, com o nome todo sujo na praça. A água sempre foi gato. 

O que incomoda é viver nesse buraco quente, abafado. O pai teve tuberculose, demorou a curar. Quase que ele foi. Agora tá bem. Mas eu é que ando com essa tosse. Jogo game de guerras intergaláticas, mas essa minha tosse é de Dama das Camélias. Dá muito aí entre os moradores desses buracos. Se ver alguém tossindo muito, pode desconfiar. Essa semana vou no posto, pra ver o que é.

Como todo mundo, eu trabalho lá embaixo. Já fiz tanta coisa, que até perdi a conta. De call center, onde até o tempo pra ir ao banheiro era controlado, a garçom e segurança. Minha carteira de trabalho tá esfarrapada de tantas entradas e saídas. E de tanto mostrar pra polícia. Agora tô só nos bicos. Alguns dias tem, outros, nada. Eu ando pelas ruas deixando currículos, e sento nas praças pra descansar. Quando dá, como uma quentinha ou um sanduba. Chato é voltar sem ter conseguido nada.

Na entrada do buraco já teve uma árvore. O toco dela tá lá, no meio do degrau, cinza como tudo o que se pisa. Verde agora só a parede pintada. E a esperança de que um dia a vida vai melhorar. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 28 de setembro de 2023.