sábado, 4 de novembro de 2023

O passado favelado do Leblon

Alterações no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas - Atlas Canabrava

 

Ipanema e Leblon se alternam na posição de bairros com o maior valor do m² na Cidade do Rio de Janeiro. Se o primeiro convive com o conjunto de favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, o Leblon é um bairro sem nenhuma comunidade do gênero. Mas, nem sempre foi assim. Engana-se quem só conhece o seu presente glamoroso, cenário das tramas novelescas que retratam a burguesia carioca. Aqui, os bairros da classe média quase sempre têm alguma favela por perto.


A Barra da Tijuca, por exemplo, cresceu guiada por um projeto urbanístico do poder público, na segunda metade do século XX, e pela ação do mercado imobiliário. Mas, esse crescimento foi acompanhado do surgimento de favelas no Recreio e em Jacarepaguá. Da mesma forma, Ipanema e a orla do Leblon cresceram a partir de loteamentos formais, respectivamente do fim do século XIX e do início do XX, mas acompanhados do surgimento de favelas nas áreas próximas à Lagoa Rodrigo de Freitas. 


Praia do Pinto, Largo da Memória e Ilha das Dragas foram favelas expressivas no Leblon, ou na sua fronteira com Ipanema, mas já não existem. No lugar da primeira, foi erguido o condomínio Selva de Pedra. O Largo da Memória é agora um terreno militar à espera de um empreendimento imobiliário. E a Favela das Dragas, que existiu diante do Clube Caiçaras, não deixou vestígios. 


Essa concentração de favelas na parcela Norte do Leblon talvez se explique pela dinâmica da ocupação do bairro e por sua geografia, agora muito modificada. De fato, a ocupação dessa área da Zona Sul se deu por dois vetores. Um, que vinha de Botafogo, passando por Copacabana, via Túnel Velho, chegando à restinga dividida ao meio pelas águas que extravasavam da Lagoa Rodrigo de Freitas. Nessa área surgiram os loteamentos que conformaram os dois bairros. O de Ipanema, com quadras mais alongadas no sentido da praia, e o do Leblon, com quadras mais longas no sentido mar-lagoa.


O outro vetor de ocupação saía de Botafogo em direção ao Jardim Botânico. Mas, logo encontrava obstáculos, como o próprio Jardim Botânico, e a lagoa, que alcançava aquele parque e a atual Praça Santos Dumont. Assim, a área nos "fundos" do Leblon era alagadiça e de difícil acesso. Quem, senão os mais pobres, toparia ocupá-la? É sabido que as áreas sujeitas a alagamentos ou deslizamentos são as que restam para a ocupação das famílias mais pobres.


A favela do Largo da Memória teve uma remoção precoce, em relação às demais remoções. Ela ocorreu em 1941, sob o comando do prefeito Henrique Dodsworth, nomeado interventor no Distrito Federal durante o Estado Novo. Uma parte dos seus moradores foi transferida para o Parque Proletário n° 1, na Gávea, onde hoje se encontra o estacionamento da PUC. Esses, depois, passaram a morar no conjunto habitacional Minhocão, de Affonso Eduardo Reidy. Outra parte dos moradores foi transferida para o Parque Proletário n° 3, junto à Praia do Pinto, vindo a ter uma pior sorte.


A favela da Ilha das Dragas já era ocupada desde a década de 1950, mas foi removida em 1969. Seus moradores foram transferidos para a Cidade de Deus e para a Baixada. O terreno onde existiu a favela desapareceu, mas o Clube Caiçaras cresceu...


A favela da Praia do Pinto abrigava uma população de 15 mil pessoas no momento em que desapareceu. Os planos para sua remoção já estavam em curso, quando ocorreu um incêndio de origem suspeita, em maio de 1969. Os barracos arderam como prédios em Gaza, o que apressou a sua remoção. Tal incêndio ocorreu um dia após o DOPS ter prendido as principais lideranças do local. Os moradores foram transferidos para conjuntos habitacionais em locais distantes de onde viviam, como Cordovil e a Cidade de Deus, assim como para abrigos da Fundação Leão XIII, órgão estatal que cuidava de desabrigados. Apenas uma parte dos moradores da Praia do Pinto conseguiu permanecer no Leblon, graças à iniciativa de Dom Helder Câmara de edificar a Cruzada São Sebastião.


Todas essas remoções foram acompanhadas de aterros da Lagoa Rodrigo de Freitas e de áreas pantanosas no seu entorno, gerando terrenos que foram entregues a clubes recreativos que lá estão até hoje. Muito antes disso tudo, foi no alto Leblon que existiu, no final do século XIX, o chamado Quilombo do Leblon, uma chácara produtora de flores que abrigava escravizados fugidos. Se no presente o bairro é chic, no passado foi uma área bastante popular. Mas quem quer lembrar?


Artigo publicado em 02 de novembro de 2023 no Diário do Rio.


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