terça-feira, 14 de maio de 2024

Boa pessoa

foto Roberto Anderson

O dia está agradável, você está numa parte bonita da cidade, e aproveita o momento de calma para ir ao restaurante. Sentado na varanda, você dá uma garfada no bife suculento. Mas aí aparece um pedinte, querendo um trocado. Ele está de olho na batata frita que acompanha o seu bife, e até pede uma. Você se incomoda, o garçom espanta o pedinte, e o gosto da carne parece que se esvai.


O seu carro para no sinal e já lá vem um cara correndo, colocando um par de sacos de balas no seu espelho lateral. Às vezes são batatas chips sabor churrasco. Ele é esforçado, corre uma meia maratona por dia. Mas é raro você querer comprar alguma coisa. Ou vai contra a sua dieta, ou é algo que não se encaixa no conjunto ar-condicionado e música do carro. Também à frente está o malabarista, que já desceu do tamborete e vem passando o chapéu. O sinal abre e você vai embora.


Você sai da academia se achando, tendo cumprido toda a série que lhe levará a ter os músculos que você inveja nos outros, quando se depara com um sujeito esquelético e maltrapilho lhe pedindo um pão. Ele lhe chama de pai, mas você não quer ver, passa batido sem dar atenção. 


Você entra no banco para sacar um dinheiro no caixa eletrônico. Tudo é moderno e eficiente. A agência é limpa e clara. A sua digital é reconhecida, você saca o que precisa, paga contas e transfere recursos para o filho. Ao sair, encontra um deficiente físico a quem lhe falta uma perna. Ele vende paçocas, mas ele não está ali exatamente para vender. Ele pede uma ajuda na forma de uma compra. O dinheiro que você sacou do banco está em notas altas. Além disso, as paçocas anulariam o esforço na academia.


No vagão do metrô a voz que pede que você cuide daquele meio de transporte é sobrepujada pela do desempregado que se desculpa por interromper o sossego da sua viagem. Um pouco mecanicamente, ele expõe as dificuldades por que tem passado e a situação da família que o espera em casa. Ele pede um trocado qualquer, algo que lhe dê alguma esperança. Ele vai até um, até o outro, e mal consegue alguns centavos. Quando ele se aproxima, você abre espaço para ele passar. 


No caminho até o seu condomínio, que é cercado e munido de câmeras de vigilância, você encontra uma senhora com duas crianças, que lhe pedem algo para comer. Você pensa que é uma maldade que essas crianças estejam na rua, obrigadas a conviver com tantos nãos. Se sente culpado, mas lembra que já ajuda mensalmente uma instituição para jovens necessitados. Você imagina que se der um trocado contribuirá para manter a família nas ruas, as crianças acomodadas em pedir. Você lembra que crianças são crianças e não têm culpa das confusões dos pais, mas vai embora sem nada dar.


Um rapaz franzino, que também vende paçocas, pede que lhe compre uma nova sandália. Ele mostra que a dele está realmente arrebentada. Humilde, ele ainda não aderiu aos vocativos pai, padrinho e patrão, que as ruas agora têm para estranhos. Candidamente, ele lhe chama de tio. Por hábito, você diz não. Depois se pergunta quando foi que ficou assim, insensível. 


Você raciocina que se você der ou não der, pouco importa, porque acredita que não será a sua ajuda o que mudará a situação daquelas pessoas. Você sente raiva de ser confrontado com essa situação. Você gostaria de viver num lugar diferente, sem essa pobreza que se esfrega na sua cara. Mas, você vive aqui, nasceu aqui, sua terra é essa, com todas as suas belezas e mazelas. 


Você se sente bem por ter votado em candidatos que favorecem os mais carentes. Mas não entende como a ajuda do Estado não chega justamente a esses desesperados do seu caminho. Na juventude, você imaginou um país melhor, lutou por ele, mas parece que ele nunca chega. Você sabe que se olhar os dados com calma, verá que as coisas até melhoraram. Mas a miséria das ruas daqueles tempos ainda persiste. Agora com alguns sujeitos mais destruídos. O crack se espalhou muito. 


Você anda chateado com o assédio da pobreza por onde anda. A TV mostra a calamidade ambiental que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. Você sabe que o agronegócio desmatou, que o governador local flexibilizou as regras de proteção ambiental, e que o homem comum se instalou onde não devia. Mas você ainda deseja ajudar o próximo e faz um pix para a conta divulgada pelos voluntários mais envolvidos. Você sabe que você é uma boa pessoa. 

Artigo publicado em 09 de maio de 2024 no Diário do Rio.

 

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Copadonna


O sol brilha no céu de Copacabana, assim como em todo o Rio de Janeiro. O veranico se instalou para a cidade receber na sua melhor forma a convidada do momento. Madonna, encastelada na suíte master-plus-ultra do Copacabana Palace, não participa do agito. O calor é excessivo para a diva. No entanto, ela é fundamental, ela é o pretexto para o carioca fazer mais uma festa e convidar todas as gentes. 


Do Sul, do Norte e Nordeste, do Centro-Oeste e de São Paulo, eles vêm em ônibus fretados, em voos charter (será que isso ainda existe?), em carros que quebram pelas estradas, do jeito que for possível. O Rio chama e ninguém quer ficar de fora. Todos sabem que festa no Rio é a oportunidade de incrementar a sequência de fotos do Instagram, quem sabe, de encontrar um amor, de ter casos para partilhar com os amigos e de ter histórias para contar para os futuros filhos. 


Os fãs mais fiéis se plantam na frente do hotel, esperando um aceno da cantora, uma janela que se abra. As pessoas que caminham no calçadão ralentam o passo tentando identificar o andar em que ela se encontra. As TVs também estão a postos esperando a possibilidade de dar um furo de notícia. Sorte seria descobrir que Madonna saiu disfarçada pelos fundos ou que aquela super lancha ao largo da praia leva a estrela para um banho de sol. 


Toda essa movimentação, todos esses elementos da cena são únicos. São diferentes por acontecerem no Rio. Hotel, praia, orla de Copacabana, calçadão, banhistas, fãs de meia idade, senhores indiferentes e jovens excitados pela possibilidade de, pela primeira vez, ver a cantora ao vivo formam um conjunto, cuja graça é estar na Cidade Maravilhosa. 


Dessa vez, ao que se saiba, Madonna ainda não circulou pela cidade, ainda não foi a uma favela, ainda não conheceu um Jesus. Nada disso importa, o palco vai sendo montado e o público de fora, que inclui argentinos e outras nacionalidades, vem chegando. A areia em frente ao hotel já está compactada de tantos palcos e arenas que recebe. Após Madonna, alguém já estará pensando no próximo megaevento, porque o Rio não pode ficar sem festa. 


Quando Madonna se for, a cidade fará a contabilidade dos gastos e dos lucros da festa. Os hotéis, especialmente os da orla, terão lucro certo. A Prefeitura, que aportou R$ 10 milhões, buscará justificar que os impostos recolhidos justificaram a retirada desse montante de serviços mais essenciais. O governo do Estado, quebrado e endividado, usará a cara de pau mesmo para justificar igual desembolso. 


De qualquer forma, agora é hora de acolher os convidados. Podem vir, porque o balneário é decadente, mas o carioca sabe receber e fazer a festa. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 02 de maio de 2024.