sexta-feira, 31 de março de 2023

Patrimônio vandalizado, dinheiro público no lixo

Reservatório do Carioca de novo vandalizado - 2023

Sucessivas vezes, por descuido com os recursos públicos, a construção do aqueduto da Lapa naufragou. Isso apesar de ter sido considerada uma obra importantíssima, longamente desejada, que levaria a água do rio Carioca à cidade do Rio de Janeiro, então apenas um povoado entre quatro morros e a atual praça XV. Essa triste tradição, que tanto nos atormenta, por mais de uma vez, levou ao desaparecimento dos impostos sobre o vinho que deveriam custear aquela obra. Somente após a intervenção do governador Gomes Freire, é que o aqueduto foi definitivamente concluído, já no século XVIII.

Desde então, os Arcos da Lapa, que tanto serviram, deixaram de dar passagem à água, os dois chafarizes que um dia existiram no Largo da Carioca foram demolidos, o bonde passou a usar o aqueduto, o próprio bonde quase sucumbiu à falta de cuidados com esse delicioso meio de transporte, e Santa Teresa passou por altos e baixos, resistindo atualmente como belo lugar de uma gente criativa e animada, mas também de favelas, pobreza e violência.

Por que tem que ser assim, é o que sempre nos perguntamos. Porque após alguns cuidados com a coisa pública, vêm períodos de descaso e abandono? Por que aquilo que é feito, mais à frente é desfeito? Por que aquilo que é recuperado, em seguida é abandonado pelo Poder Público sem mais explicações? O abandono e destruição da obra de restauração do Reservatório do Carioca, em Santa Teresa, após apenas quatro anos de sua realização, é chocante. Aí vemos um encurtamento do prazo em que o Poder Público é capaz de detonar uma obra tão importante e tão bem executada. 

Até 2018 o Reservatório se encontrava abandonado pela Cedae, e havia sido pilhado por pessoas inescrupulosas, que haviam levado os gradis de ferro das bacias de água, as esquadrias, telhas, louças e tudo mais da casa do encarregado da cloração da água, e as obras de arte dos jardins. Até mesmo peças em pedra haviam sido quebradas pelo vandalismo que lá havia se instalado. O mato crescia e o imóvel era constantemente invadido. Com recursos do Fundo Estadual de Compensação Ambiental, já que o reservatório está situado no Parque Nacional da Tijuca, teve então início a cuidadosa restauração do Reservatório e da caixa da Mãe D'Água. 

Esta última existe desde o século XVIII, quando se construiu o sistema que levaria a água do Rio Carioca até os sedentos habitantes da cidade. Funcionava como uma caixa de passagem da água, dentro de uma construção quadrangular à beira da rua, encimada por uma cúpula. Já o reservatório foi uma obra do Império, de 1865, que contava com um açude, bacias de pedras aparelhadas para decantação das areias do rio, três bacias igualmente de pedra para acumular a água, duas casas de funcionários, e um belo jardim romântico, defronte a uma escadaria bipartida. Juntamente com um conjunto de outros reservatórios do Estado do Rio de Janeiro, o Reservatório do Carioca e a caixa da Mãe D'Água são tombados pelo Inepac.

A Cedae, que antes havia permitido a destruição, também decidiu participar do projeto. Ela definiu que as bacias de pedra deveriam ser cobertas para que viessem a receber a água tratada proveniente do Reservatório do França, que fica um pouco mais adiante, também na rua Almirante Alexandrino. Assim, finalmente os moradores da favela do Guararapes, situada logo abaixo do reservatório, passariam a receber água tratada, o que até aquele momento (e até hoje) não ocorria. Todos os elementos em pedra foram restaurados, os gradis foram refeitos, e o açude foi limpo. A casa do antigo encarregado do cloro foi adaptada para servir como centro de recepção a visitantes. E o jardim romântico, junto à rua, foi recuperado a partir de uma extensa pesquisa iconográfica, que identificou as espécies ali anteriormente plantadas. Um novo chafariz preencheu o local vazio onde um dia havia um chafariz original, já desaparecido.

Essa obra lindíssima, que devolveu um espaço de lazer e de história aos cariocas e turistas foi acompanhada de perto por técnicos do Iphan e do Inepac, e custou algo em torno de R$ 4 milhões. Quando terminada, foi entregue à Cedae, que chegou a colocar seguranças no local. Pena que a Cedae não abriu o espaço a visitas, deixando inúteis o Centro de Visitantes, os painéis explicativos e a trilha sinalizada, que levava até às Paineiras. Logo veio a privatização daquela empresa e, nesse processo, o Reservatório deve ter sido visto como um peso morto. A concessionária Águas do Rio não manteve ninguém cuidando do local e, aparentemente, não entendeu do que se tratava.

O resultado é que hoje, tão pouco tempo depois, o Reservatório do Carioca está novamente depredado. O chafariz e os bancos foram furtados, as coberturas de vidro sobre as bacias estão sujas e afundadas, como se alguém tivesse pulado em cima, e o jardim está destruído. Por falta de manutenção, a água do rio agora invade toda a superfície do reservatório, caindo em cascata pela escadaria sobre o jardim. Em caso de chuva mais forte, essa é uma situação de risco para o bairro, já que a água está correndo fora do leito natural do rio.

Está tudo desfeito, uma tristeza. Talvez a nova concessionária não saiba que o descuido com o Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro é um crime. Talvez poucos saibam disso e nem os órgãos de patrimônio, após anos obscuros, tenham se dado conta do que vinha ocorrendo. O fato é que tudo o que havia sido feito no Reservatório do Carioca foi desfeito e os recursos públicos foram jogados no lixo. Mais uma vez. Até quando? 

Artigo publicado em 30 de março de 2023 no Diário do Rio.

 

quarta-feira, 29 de março de 2023

Um programa social de energia solar

Mudança de governo, mudança geral de princípios a orientar as ações do novo governo. Sai o estímulo às armas e ao desmatamento, entra o cuidado com os mais pobres e a intenção de preservar o meio ambiente. Coerentemente, desde o Gabinete de Transição já havia a proposta para que fosse criado um Programa Social de Energia Solar. Uma ótima ideia, que não pode ser esquecida.

Visando contribuir com a concretização desse programa, a Revolusolar, ONG que atua na implantação de painéis solares em favelas, juntamente com o International Energy Iniciative - IEI Brasil, se propôs a construir uma proposta a ser apresentada ao governo federal. A elaboração de tal proposta, com sugestões de metas e princípios, se deu através de uma oficina aberta a diversos setores da sociedade, que se realizou nesta terça-feira, 21 de março. 

A oficina da Revolusolar e da IEI aconteceu no Circo Crescer e Viver, na Praça Onze, com a participação de moradores de favelas do Rio de Janeiro, de representantes de diversas organizações comunitárias, de técnicos, de professores e de representantes de órgãos públicos. Através de uma dinâmica que buscou suscitar as questões pertinentes ao tema, assim como as prioridades e os desafios, foram levantados diversos pontos que irão compor a proposta a ser levada ao governo. 

Entre essas questões, foi lembrada a necessidade de escuta democrática das comunidades envolvidas, o investimento em educação, especialmente aquela relacionada ao tema energético, e o acesso facilitado a informações sobre energia solar. Foi levantada também a necessidade de se buscar os recursos necessários para um programa de envergadura nacional e o comprometimento, tanto das empresas de energia, quanto das agências reguladoras, visando a sustentabilidade do sistema. 

Os participantes da oficina lembraram que a retomada do projeto Minha Casa Minha Vida, com as correções de problemas conceituais ocorridos na primeira fase, se mostra uma excelente oportunidade para a adoção da energia solar em suas futuras edificações. Seria importantíssimo que esse programa de moradia social adotasse princípios de sustentabilidade, entre os quais a questão da energia. 

Foi lembrada também a necessidade de haver a socialização dos benefícios advindos da adoção da energia solar e a formação de mão de obra especializada nas comunidades, capaz de implantar sistemas de energia solar mesmo fora das mesmas. Seria uma nova opção de renda para moradores de baixa renda, com especial atenção para a inclusão de mulheres. 

Um aspecto muito interessante a ser pensado é a própria produção das placas fotovoltaicas. Em grande parte, elas vêm da China, o maior produtor mundial. Mas já há no Brasil uma boa quantidade de fábricas instaladas. Uma grande demanda para um programa oficial poderá estimular o aumento dessa produção nacional. Mas há também a possibilidade de produção descentralizada, em pequena escala, que vem se tornando uma realidade. O estímulo a essa produção nas comunidades propiciaria o fechamento de um ciclo, em que essas comunidades seriam receptoras e fabricantes das placas solares.

Artigo publicado em 23 de março de 2023 no Diário do Rio.

Overbooking em evento do clima


Na última terça-feira, dia 14 de março, no Museu do Amanhã, houve o lançamento do Climate Hub Rio. Trata-se de um centro de estudos voltado para o clima e o meio ambiente, uma iniciativa da Universidade de Columbia. No evento de lançamento estiveram presentes o embaixador Celso Amorim, o Prefeito Eduardo Paes, a Secretária Municipal de Meio Ambiente, além do reitor e de pesquisadores da Universidade.


O Climate Hub Rio pretende promover a troca de conhecimento entre pesquisadores do Brasil e dos EUA, assim como oferecer bolsas de estudo na própria Universidade. Há a intenção também de se aproximar de movimentos populares ligados a essas questões. Desde 2013, a Universidade de Columbia já está presente na cidade através da Columbia Global Center/ Rio de Janeiro, um dos dez centros da mesma universidade pelo mundo dedicados a promover a instituição e a promover possibilidades de interação com parceiros e pesquisadores locais. O Columbia Hub Rio é parte das ações desse centro. 


Infelizmente, a organização do evento se mostrou pouco preocupada com o público que se interessou em participar do mesmo, e se inscreveu via internet (o meio recomendado pela organização), entre os quais diversos ativistas das questões climáticas e estudiosos. Quase a metade do auditório do Museu do Amanhã foi reservado para convidados, os vips do clima. Além disso, se praticou um overbooking, aceitando muito mais inscrições do que o número de lugares disponíveis. O resultado foi uma enorme fila de inscritos deixados do lado de fora do Museu, ao sol da Praça Mauá (não há árvores nas proximidades do Museu do Amanhã!!!), sem qualquer explicação. Lamentável. 


O lançamento dessa iniciativa da Universidade de Columbia coincide com a realização na Suíça de mais um Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, o IPCC. Esse encontro fornecerá subsídios para a próxima Conferência sobre Mudança Climática, a COP-28, que acontecerá em dezembro em Dubai.


A jornalista Ayesha Tandon, que trabalha junto ao site Carbon Brief, baseado no Reino Unido, divulgou uma análise interessante sobre a realização dos relatórios do IPCC. Inicialmente, salta aos olhos que, desde a fundação do IPCC, apenas 31% das contribuições aos seus relatórios vieram de países do hemisfério Sul do planeta. O Brasil se encontra em 10º lugar na lista de países de onde vieram contribuições autorais para os relatórios, com 102 contribuições. Os EUA forneceram 699 contribuições autorais, estando em primeiro lugar nessa lista. À frente do Brasil estão EUA, Reino Unido, Alemanha, China, Japão, Austrália, Canadá, Índia e França.


Apesar disso, esses dados têm apresentado mobilidade na direção de maior inclusão. A representação dos países do hemisfério Sul no IPCC saiu de apenas 19% para os atuais 43%. Sobre a participação de mulheres nos relatórios do IPCC, a jornalista informa que ela passou de apenas 8% no primeiro relatório, em 1990, para 33% de participação no último relatório. Um bom sinal.


É possível perceber um crescente interesse pelas questões relacionadas à crise climática, algo que já estamos vivendo e sofrendo as consequências. É bastante interessante e auspicioso quando o debate sobre o que fazer extrapola os limites do mundo acadêmico e chega às organizações comunitárias, especialmente aos mais jovens. Esse diálogo com a academia precisa ser incentivado e poderá trazer muitos bons frutos. Mas para isso os interessados não podem ser barrados nas portas dos eventos acadêmicos, assim como a academia deve caminhar cada vez mais em direção à maior diversidade.   


Artigo publicado em 16 de março de 2023 no Diário do Rio.

Obras na Lagoa

Padrão de golas FPJ
A escolha do Rio de Janeiro para sediar a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio-92, gerou um momento bastante favorável a ações ambientais na cidade. Entre outras transformações, ocorreu a implantação das primeiras ciclovias, em 1991: a da orla, do Leme ao Recreio, e a da Lagoa. Esta última foi projetada como ciclovia compartilhada com os pedestres, que em muitos momentos dividem uma estreita faixa de pouco mais de 2,00 m de largura. 

Com o tempo esta situação passou a gerar conflitos, já que, tanto o número de pedestres passeando ou correndo na orla da Lagoa, quanto o número de ciclistas aumentou bastante. Muitos ciclistas adotaram também bicicletas mais velozes, além das bicicletas elétricas, que trafegam em velocidades que podem causar danos em caso de acidentes. Por tudo isso, é pouco compreensível que, em trechos em que as primitivas calçadas são mais estreitas, sobrando apenas o espaço da ciclovia para ser compartilhado entre os pedestres e os ciclistas, esta última não tenha sido deslocada para o canteiro central da avenida que contorna a Lagoa. 

É bom lembrar que o canteiro central está disponível, agora que o estacionamento sobre o mesmo foi proibido. Aliás, ele vem sendo mais arborizado por iniciativa dos moradores locais, que têm escolhido árvores frutíferas. É uma ação interessante, que tem o potencial de atrair mais pássaros para o local. Como o poder público, aparentemente, não tem um projeto próprio, que deveria estar em consonância com o tombamento da Lagoa, os moradores executam aquilo que lhes parece mais adequado. E deve ser. Assim, uma ciclovia ali seria bastante aprazível.

Voltando à ciclovia compartilhada junto ao espelho d'água, uma série de outros problemas se acumularam, para além da fricção entre pedestres e ciclistas. As raízes das árvores criaram calombos sob o asfalto, e este se encontrava deteriorado em diversos pontos. Por essas razões, a Prefeitura da Cidade decidiu realizar obras para a sua recuperação. Apesar de não resolver o conflito pela intensidade de uso por diferentes usuários, essa seria uma reforma bem-vinda. 

No entanto, como já ocorrido na Glória, a Prefeitura novamente optou pela pavimentação de áreas em saibro ao longo da ciclovia. Há nessa postura uma certa incoerência com o posicionamento da própria administração municipal em favor de uma cidade, cujo planejamento consideraria as questões ambientais e climáticas. Ora, mais pavimentação significa menos área permeável e mais refração de calor. A impermeabilização desses trechos da orla da Lagoa é agravada pelo uso, na referida obra, de cimento abaixo do novo piso intertravado (bloquete), ao invés de areia, conforme recomendado por fabricantes, o que guardaria um pouco de permeabilidade. 

Como se não bastasse a excessiva pavimentação, as golas das árvores (espaço aberto junto aos troncos das mesmas) onde vem ocorrendo essa pavimentação estão ficando reduzidas a diminutos e impossíveis quadrados de aproximadamente 0,50 X 0,50 m, o que contraria totalmente as normas da própria Prefeitura. Árvores são seres vivos, amigas generosas que nos dão sombra e frescor. É verdade que se não soubermos escolher as espécies corretas para o ambiente urbano, poderão provocar danos ao calçamento e até às estruturas das edificações. Mas na orla da Lagoa ela são mais do que bem-vindas. Por que, então, estão tendo seus troncos espremidos?

Em tempos passados, quando não se considerava os benefícios ambientais das árvores urbanas, e o valor de áreas permeáveis, a Prefeitura indicava, ou tolerava, golas mais estreitas. Mas hoje não mais. Em sua Portaria n° 112, de 2016, a Fundação Parques e Jardins - FPJ indica, para golas de árvores de porte médio ou grande, um comprimento mínimo de 1,50 m. Já para árvores de grande porte, a largura mínima indicada para as golas é de 1,00 m, considerando que quanto maior, melhor. O parágrafo 3° desta mesma Portaria indica que "nos canteiros ajardinados com larguras inferiores a 60 (sessenta) centímetros só é permitido o plantio de espécies arbustivas, ornamentais e de forração". Portanto, de acordo com a própria Prefeitura, há uma flagrante inadequação entre os espaços que ela deixou para as árvores e a existência das mesmas. Imagina se algum responsável pelo projeto decide pela erradicação das árvores para a adequação do projeto!

Por tudo isso, está mais do que na hora de um planejamento integrado entre os órgãos municipais. Não é possível que o setor de obras ignore as determinações do setor ambiental. Nem sequer é possível que qualquer intervenção deixe de passar pelo crivo da sustentabilidade ambiental. Sem isso, a cidade até poderá fazer muitas realizações. Mas serão elas as mais corretas e desejáveis? E isto está ocorrendo numa ciclovia inspirada pelos bons ventos da Rio-92...

Artigo publicado em 09 de março de 2023 no Diário do Rio.

Santo Antônio além da elitização

Santo Antônio além do Carmo - foto Roberto Anderson

O bairro de Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, tem esse nome por ser a área que se encontra depois do Convento de Nossa Senhora do Carmo, fora da área mais central durante a colônia. Vale lembrar que, no primeiro século de ocupação da cidade, a sua principal entrada se dava junto àquele Convento. A atual igreja de Santo Antônio, que dá nome ao lugar, é do início do século XIX, substituindo outra mais antiga, e se encontra no largo de mesmo nome, próxima ao Forte de Santo Antônio. 

É uma área de sobrados e casas térreas, mais simples do que os da região do Pelourinho, tendo permanecido um pouco isolada do restante da cidade no longo período de deterioração por que este último passou. Com as mudanças no Pelourinho, pouco a pouco, as condições do Santo Antônio foram se alterando. 

Até pouco tempo atrás, só mesmo alguns mais curiosos costumavam se aventurar por suas ruas estreitas e acolhedoras. Quem visitava o Santo Antônio encontrava um ambiente familiar, com moradores que lá se encontravam há muitas décadas, muitos deles debruçados nas janelas, vendo o movimento. Por suas ruas costuma passar a fanfarra que rememora o 2 de julho.

Em 2018 foi ao ar a novela Segundo Sol, da Globo. Parte da trama se passava no Santo Antônio. Para os não noveleiros, talvez não faça diferença saber que lá estava situada a casa da família de "Beto Falcão", interpretado pelo ator Emílio Dantas. Mas o fato é que o bairro entrou em evidência, atraindo mais curiosos. 

No ano seguinte a prefeitura deu início ali a várias obras de requalificação. Elas incluíram um novo sistema de drenagem de águas pluviais, o que veio atender a uma antiga demanda, já que eram comuns os alagamentos após chuvas mais fortes. Foram refeitas as pavimentações das vias, com a substituição do asfalto por paralelepípedos, e das calçadas. Foram inseridas travessias de pedestres no nível das mesmas, e a fiação elétrica foi embutida. Aliás, durante os serviços, que sofreram diversos atrasos, houve um furto de fios de cobre da obra por ladrões uniformizados de trabalhadores da empreiteira. Por sorte, essa engenhosidade do crime foi descoberta. 

Numa primeira avaliação, as obras parecem muito bem feitas e o bairro vem se renovando a olhos vistos. Dá um imenso prazer caminhar por ali, absorvendo a atmosfera charmosa que se instalou. Nas varandas das casas do Santo Antônio se pode curtir um belíssimo pôr do sol. Há novas pousadas, novos bares e restaurantes, novos ateliers de artistas, fachadas recém pintadas e ... muitas casas à venda. A enorme quantidade de novos turistas atraídos ao lugar contrasta com os moradores ainda remanescentes. Mas, tais sinais podem indicar um processo que tem o horrível nome de gentrificação. 

Como intervir para sustar a deterioração urbana de um lugar é sempre um enorme desafio para os gestores das cidades. Deixar de cuidar de bairros populares não é uma opção correta. Mas ao realizar melhorias nesses bairros, ou mesmo em favelas, os imóveis se valorizam e há o fenômeno da expulsão de inquilinos, agora sobrecarregados com aluguéis reajustados, e de proprietários, tentados a realizar o súbito lucro tornado possível. A atratividade para o turismo é mais um fator de pressão sobre áreas renovadas.

Salvador já teve uma experiência traumática de substituição forçada de população, quando, na década de 1990, foram realizadas as obras de recuperação do Pelourinho. Duas décadas antes, o governo havia tido a iniciativa de ocupar com repartições públicas alguns imóveis maiores. Mas, a deterioração dos demais imóveis, a presença de prostituição nas ruas, e a ocorrência de casos de violência levou o governo à polêmica decisão de expulsar os habitantes locais. 

As 1.800 famílias que habitavam as diversas casas de cômodos instaladas nos sobrados arruinados foram substituídas por lojas e restaurantes, que receberam diversas isenções de impostos e aluguéis, criando-se um ambiente bastante artificializado. Com o tempo, poucos desses estabelecimentos elitizados se mantiveram e há agora muitos imóveis vazios, novamente em risco.

Serão os atuais moradores de Santo Antônio Além do Carmo capazes de conviver com a presença de turistas em suas ruas e com a valorização do lugar? Resistirão a festas barulhentas que vêm ocorrendo? A prevenção da expulsão por razões de mercado não é simples, apesar de poder ser combatida com medidas de regulação do aumento de aluguéis. Já a deterioração do ambiente urbano, com práticas nocivas à moradia, como som alto durante várias horas do dia, estendendo-se pela noite adentro, pode e deve ser combatida, caso se deseje a permanência de moradores. O tempo dirá se Santo Antônio manteve seus moradores e o charme atual. 

Artigo publicado em 02 de março de 2023 no Diário do Rio.

É a chuva e a falta de planejamento

foto Instagram do prefeito Felipe Augusto
Choveu torrencialmente no litoral paulista no domingo de Carnaval. No entanto, chuva torrencial, um fenômeno comum em boa parte do território brasileiro, se tornou um conceito incapaz de definir o que ocorreu. Foi um dilúvio concentrado em poucos pontos. Choveu mais do que 600 mm num único dia, o maior registro no país até então, e o dobro do esperado para aquela área nessa época do ano para um mês inteiro. Por falar em expectativas de volumes de chuva, será preciso repensar esses parâmetros. Eles subiram muito. A crise climática está aí, é uma realidade, gerando catástrofes e mortes. Muito triste, mas poderá ficar pior se não adaptarmos nossas cidades. 

O presidente Lula sobrevoou as áreas de desastre. Na entrevista em que concedeu em seguida, além de oferecer apoio material e solidariedade aos moradores dos municípios atingidos, ele pediu que não sejam mais construídas casas nas áreas passíveis de serem afetadas por novos deslizamentos e enchentes. Aí está a síntese do imenso programa que temos pela frente: mapear as áreas mais suscetíveis a desastres, adaptar os planos locais à nova realidade de crise climática, e realocar as moradias atualmente em áreas de risco. 

Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Niterói e São Gonçalo em 2010, Friburgo em 2011, Niterói em 2018, Bahia em 2021, Santa Catarina, Recife, Angra dos Reis e Petrópolis em 2022, o litoral de São Paulo em 2023, os eventos extremos, com perdas de vidas, se sucedem com cada vez maior frequência. A crise climática não só traz ameaça às áreas urbanas próximas ao mar e aos rios, já que o nível dos oceanos deverá subir, mas também às áreas de encostas. Ali, os volumes crescentes das chuvas tendem a provocar grandes deslizamentos, com perdas de vidas e de bens materiais. 

Outro fator a ser considerado é a diferença de condições entre as classes sociais para enfrentar tais eventos extremos. O caso das cidades litorâneas paulistas exemplifica essa situação. As áreas entre o mar e a rodovia Rio-Santos, portanto mais desejadas e mais caras, sofreram menos. Já as áreas acima da rodovia, mais íngremes e mais próximas da Mata Atlântica, são aquelas mais ocupadas por pessoas mais pobres, e foram as mais atingidas. A preocupação com tais circunstâncias é o que se chama justiça ambiental, ou justiça climática. A discussão sobre o problema precisará considerar a maior vulnerabilidade locacional das pessoas com menos recursos.

Um grande entrave a ser enfrentado é a falta de preparo técnico das prefeituras para lidar com essa nova realidade, e o imediatismo dos políticos. Eles, em geral, são pouco afeitos a planejar o desenvolvimento futuro de suas cidades, e a cumprir os planos, quando estes são realizados. Há também a recusa de vizinhanças mais ricas em receber projetos de habitação social. O prefeito de São Sebastião já havia sido alertado em 2020, pelo Ministério Público Estadual, sobre os riscos na Barra do Sahi, área mais atingida. Segundo o mesmo, quando tentou construir quatrocentas casas populares num terreno em Maresias, foi barrado pelos proprietários mais ricos. 

O governo federal, através dos ministérios do Meio Ambiente e das Cidades, precisará dar condições aos entes locais para que se preparem. Mas, mesmo esse último ministério também tem um histórico de prática pouco afeita a um planejamento menos politizado. Com a exceção de um curto período após a sua criação, o Ministério das Cidades tem sido gerido por políticos de centro-direita, com uma ótica mais empresarial, e mais interessados em ampliar seus pequenos poderes. Portanto, não apenas as administrações locais precisarão se preparar e adotar formas de atuação condizentes com o novo paradigma climático, mas também as administrações estaduais e o governo federal. 

A novidade é que temos um presidente que dá sinais de que compreende a gravidade e a dimensão do problema. Mas, não é novidade escrever sobre as condições urbanas que potencializam essas catástrofes. Tampouco é novidade que ambientalistas e urbanistas chamem a atenção para esses problemas. Muito menos é novidade que propostas para mudança de curso, com melhor planejamento das cidades, sejam incansavelmente expostas, divulgadas, brandidas na frente dos políticos. Quem sabe, um dia, eles as percebam.

Artigo publicado no Diário do Rio em 23 de fevereiro de 2023.