quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Ao clube do coração, tudo

 

Estádio do Vasco São Januário - 1927 

Durante muitos anos, os arquitetos e urbanistas, e todos que se interessam pelos destinos das cidades brasileiras, lutaram pela melhoria das legislações incidentes sobre os espaços urbanos. Isto porque os interesses do capital imobiliário sobre o solo urbano impediam que predominasse uma ótica mais voltada para o bem comum, a justiça social, a preservação do Patrimônio e do meio ambiente. Finalmente, com o Estatuto das Cidades, a Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001, abriu-se a possibilidade de que tais princípios fossem incorporados ao direito urbano nacional.


O Estatuto das Cidades trouxe a definição da função social da propriedade, relativizando um pouco o conceito de propriedade e exigindo que o solo urbano, não importando quem seja seu proprietário, deva servir ao bem dos cidadãos que compartilham o mesmo espaço urbano. Assim, por exemplo, terrenos eternamente vazios, à espera de uma futura valorização deixam de ser aceitáveis. Os municípios passaram a ter instrumentos para induzir o seu aproveitamento. 


O Estatuto das Cidades instituiu diversos novos instrumentos de legislação urbana, como o usucapião urbano, a outorga onerosa do direito de construir, o IPTU progressivo, o parcelamento ou edificação compulsórias, o Estudo de Impacto de Vizinhança, e as operações urbanas consorciadas, as OUCs. Estas últimas devem estar de acordo com as definições do Plano Diretor, e devem ter como finalidade "alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental". Visam, portanto, obras públicas e melhorias no espaço público.


As intervenções conhecidas como Porto Maravilha são uma típica OUC. Os gabaritos dos terrenos daquela área foram elevados, gerando um novo potencial construtivo, o qual foi posto à venda para financiar as intervenções na estrutura urbana da Área Portuária. É possível discutir se a elevação dos gabaritos foi excessiva, se houve pouco cuidado com o Patrimônio e a paisagem local, e se as obras realizadas foram de qualidade. Mas, os recursos advindos das alterações nos gabaritos geraram recursos que vêm sendo investidos naquela própria área.


Tome-se agora o projeto de lei enviado pelo prefeito carioca à Câmara de Vereadores, que institui a OUC do Vasco da Gama (Projeto de Lei Complementar nº 142/2023). Ela é voltada para beneficiar um clube esportivo, que, por coincidência, é o clube do coração do prefeito. E ela tem vários senões que a caracterizam como uma operação não aceita pela legislação. 


Salvo algumas intervenções no espaço público exterior, a maior parte dos recursos auferidos pela operação serão usados para a ampliação do estádio do clube, uma entidade privada, e na melhoria do seu parque aquático. Vale lembrar que, atualmente, o Vasco da Gama é controlado pela 777 Partners, um grupo norte-americano. Nada mais distante do estereótipo de clube de origem popular cultuado pelos torcedores. 


Para gerar esses recursos, é definido um potencial construtivo sobre um terreno já edificado. Tal edificação, por ser um estádio de futebol, tem uma área gramada, naturalmente livre. O que a operação proposta faz é imaginar que essa área gramada, e alguns espaços livres no entorno do estádio, seriam passíveis de receber edifícios, o que geraria um valor adicional ao complexo.


Como, obviamente, não se pode edificar no gramado do estádio e nem no seu entorno imediato, o projeto de lei propõe a transferência desse potencial construtivo, artificialmente criado, para outros bairros. Isto é denominado transferência do potencial construtivo, instrumento também previsto no Estatuto das Cidades. No entanto, a associação desses dois instrumentos numa mesma operação é perversa, porque um bairro fica com os recursos auferidos, e seus possíveis benefícios, enquanto outros recebem a pressão de um maior adensamento. 


A venda dessa metragem quadrada virtual irá impactar alguma outra área da cidade e os lucros serão transformados num estádio maior, capaz de gerar mais renda para o clube. Não está no Plano Diretor a indicação de que a ampliação do estádio do Vasco da Gama é benéfica para a cidade. Não há previsão no instrumento Operação Urbana Consorciada que outras áreas fora do perímetro da mesma sejam impactados por pretensas melhorias na área da OUC. Não há no projeto de lei previsão de controle compartilhado com representação da sociedade civil, como previsto no Estatuto das Cidades. 


Se houver uma expansão da moda de beneficiar clubes de futebol com a admissão de um potencial construtivo sobre seus gramados, poderemos ver os bairros da cidade impactados pelo que poderia ser construído no gramado do Flamengo, do Fluminense, do Bonsucesso, e de outros tantos que existem por aí. Além disso, é possível que venha aí o novo estádio do Flamengo, no terreno do antigo gasômetro, pertencente à Caixa Econômica, sobre construções que mereceriam ser preservadas. E depois, quem sabe a venda do potencial construtivo do gramado do novíssimo estádio.


A verdade é que o Estatuto das Cidades, elaborado com tantas esperanças positivas, está sendo torcido e retorcido para abrigar operações fora do interesse geral. Por maior que seja a torcida de um clube de futebol, ela não é o conjunto da população, fator que deveria nortear os projetos urbanos.


Vale lembrar que, quando dois botafoguenses ocuparam o governo do estado e a prefeitura, respectivamente Marcelo Alencar e Cesar Maia, um terreno na Praia de Botafogo, ganhou a possibilidade de receber um edifício. Isso permitiu que a mineradora Vale devolvesse ao Botafogo a sede de General Severiano, que ela havia adquirido do mesmo clube, e aceitasse em troca o terreno então valorizado no Mourisco. Como se vê, a paixão pelos clubes do coração opera milagres na legislação urbana.


Artigo publicado em 16 de novembro no Diário do Rio.


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