segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Edge Rio

O Arco Metropolitano é uma rodovia que liga o Porto de Sepetiba à BR 040, e que visa desviar o trânsito de veículos, especialmente os de carga, das áreas urbanas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Assim, ele evita as áreas já urbanizadas, atravessando aquelas ainda vazias. Mas, a sua presença pode vir a induzir a ocupação urbana, já que rodovias têm esse poder. Quando a ocupação não é planejada, ela pode ocorrer de forma espontânea e irregular. Não à toa, em 2008, o então Secretário de Obras do Estado do Rio de Janeiro, e futuro governador, Luiz Fernando Pezão, incentivou os empresários a ocuparem as margens do Arco Metropolitano, de forma a evitar uma possível favelização.

Durante muito tempo, não houve resposta dos empresários àquela exortação do ex-governador. A própria rodovia entrou em crise com a queda da circulação de veículos, em função da sua má conservação, da ausência de administração, e da insegurança. No entanto, em 2022 houve a concessão da rodovia para a iniciativa privada e já há notícias do aumento do fluxo de veículos. Surgem também algumas iniciativas empresariais, como o Centro de Logística Golgi, no entroncamento do Arco Metropolitano com a RJ-085, onde foi construído um galpão com 61 mil m2 de área para locação, com previsão de ampliação. Para essa mesma localidade, hoje um lugar vazio, há uma campanha publicitária de um empreendimento voltado para a construção de habitações, comércio e serviços, ocupando uma área de aproximadamente 5 milhões de m2. Complementando esse projeto, haveria um aeroporto para aeronaves particulares, o ArcoRio.

É difícil saber até que ponto essas são iniciativas coordenadas com um planejamento metropolitano ou apostas soltas do mercado imobiliário. A verdade é que o Estado do Rio de Janeiro não prima por ter um planejamento para a sua metrópole, nem um órgão ativo e com força para propor projetos e vê-los implementados. É possível que se esteja assistindo ao surgimento de uma Edge City (cidade à margem), a qual trará novos desafios futuros.

A expressão Edge Cities foi cunhada pelo jornalista americano Joel Garreau que, em 1991, escreveu o livro Edge City: Life in the New Frontier. Ele buscava nomear um fenômeno que consistia no surgimento de áreas urbanas em entroncamentos rodoviários, fora da mancha urbana das cidades já constituídas, com uma grande oferta de postos de trabalho, grandes lojas de departamento e de varejo ou shopping centers e moradia em menor proporção do que os postos de trabalho. Essas novas áreas urbanas não são cidades, na medida em que não são autônomas, têm uma forte participação do capital privado na sua formação e desenvolvimento, e são relativamente recentes, tendo apenas algumas dezenas de anos de existência.  

Garreau também chamou a atenção para a forte presença nessas Edge Cities de escritórios voltados para a área de informática, em edifícios não tão altos, cercados por áreas verdes e pistas de corrida e equipamentos de lazer e diversão. Elas passaram a existir não só nos Estados Unidos, mas também na Europa e na Austrália. Alphaville e Tamboré, na área metropolitana de São Paulo, seriam exemplos desse modelo de urbanização. O fato de serem fenômenos em crescimento, não significa que sejam a melhor solução para a constituição de espaços urbanos. Quando, eventualmente, o poder público decide investir no lugar, trazendo transporte público, instituições públicas de administração e de saúde, como foi o caso de Surrey no Canadá, isso se mostra uma operação custosa.

Se até em países com mais tradição de planejamento essas urbanizações privadas e descoladas dos contextos das cidades vêm existindo, o que não poderá ocorrer no Brasil, um campo fértil para as experimentações do capitalismo? Com tempo, saberemos.   

Artigo publicado em 22 de agosto de 2024 no Diário do Rio.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Volta às aulas

O segundo semestre letivo chegou. Em ondas sucessivas os estudantes foram voltando às aulas. Parece que os pequenos voltaram antes do que os universitários, um alívio para os pais, sobrecarregados durante as férias. Entre os universitários, quando o calendário não está bagunçado por greves passadas, os das públicas voltaram antes. No final, estão todos em salas de aula, alunos e professores, pelos próximos quatro meses. 

Os efeitos na cidade são evidentes. Há mais pessoas circulando. Há mais pessoas nos ônibus, nos trens e no metrô. Nas calçadas, se vê a garotada uniformizada. O barulho de suas brincadeiras volta a chamar a atenção. 

Desaparece aquela calma relativa no trânsito. Voltam os engarrafamentos provocados pelo aumento de carros circulando nas ruas e, principalmente, pelo acúmulo de carros de pais parados nas faixas de trânsito em frente às escolas particulares. Boa parte em filas duplas. Quanto mais exclusiva, mais confusão no trânsito aprontam os pais. Como não há policiamento de trânsito na cidade, todos são afetados, mesmo aqueles que abominam a ideia de ter filhos.

É verdade que a violência é um problema, o que faz com que os pais, aqueles que podem, atrasem ao máximo o momento em que os filhos passam a ir sozinhos à escola, uma pena. Bons tempos aqueles em que miúdos que mal conseguiam carregar suas pastas já podiam caminhar sozinhos até o colégio. Mas há também um certo exagero, uma falta de confiança no transporte público e na sagacidade dos filhos. Dar-lhes autonomia é acreditar neles e vê-los corresponder e crescer. Aqui, boa parte dos filhos vão seguir sendo levados de carro à escola. 

Os professores encontram seus novos alunos, o que é sempre um momento esperado por ambas as partes. Será o mestre, ou a mestra, interessante e capaz de captar a atenção da turma e fazê-la progredir no semestre? Serão os alunos poucos ou numerosos? Serão atentos? Formularão perguntas interessantes? Os dois lados se tateiam, as piadas, algumas sem graça, e as brincadeiras tentam quebrar o gelo. A tarefa de guardar os nomes dos alunos é o primeiro desafio do professor, nem sempre cumprido ao fim do semestre. 

Nas escolas das favelas e dos bairros populares segue havendo uma certeza: em vários dias elas permanecerão fechadas, em função de infrutíferas e infindáveis operações policiais, ou pela continuada guerra entre as facções criminosas da cidade. Em outros, as aulas serão interrompidas por tiroteios, que obrigarão estudantes e professores a se abrigarem por horas a fio em corredores no meio da escola.

O Ministério da Educação acaba de liberar a avaliação do ensino brasileiro pelo Ideb em 2023. O ensino fundamental carioca, de responsabilidade da Prefeitura avançou, mas ainda fica bem atrás de cidades do Nordeste, que têm demonstrado o que é cuidar da educação. Já o ensino médio, de responsabilidade do Governo do Estado, teve a penúltima nota entre todos os estados da federação. Uma vergonha, que reflete a maneira descuidada com que se elegem governadores no Estado do Rio de Janeiro.

Artigo publicado em 15 de agosto de 2024 no Diário do Rio.


quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Inventário de perdas e danos

O antigo Gasômetro do Rio de Janeiro - aquarela

Com a provável, e bastante discutível, construção do estádio do Flamengo no terreno do antigo Gasômetro, é preciso que se faça o inventário dos bens que, certamente, se perderão com essa obra. São edificações industriais remanescentes do período em que ali funcionou a fabricação e o armazenamento de gás para a cidade do Rio de Janeiro. Essa memória dos primórdios da indústria tem sido preservada em diversos países, já sendo considerada como parte do seu Patrimônio Cultural. 

O fornecimento de gás na cidade remonta ainda ao Império, quando o Barão de Mauá criou a Companhia de Iluminação a Gás. Três anos após a assinatura do contrato de exclusividade para o fornecimento desse serviço, ocorrida em 1851, o gás obtido pela queima de carvão já chegava a 3.027 lampiões de rua, anteriormente iluminados pela queima de óleo, 3.200 residências e três teatros. 

A empresa, que se localizava na antiga Rua Senador Euzébio, hoje parte da Avenida Presidente Vargas, em edifício ainda parcialmente existente, foi depois vendida a uma companhia inglesa e, em 1876, a concessão do serviço passou para a empresa belga Société Anonyme du Gaz - SAG. Foi essa empresa que, em 1911, construiu as instalações do Gasômetro em São Cristóvão. É importante lembrar que o terreno onde a companhia se instalou é fruto de aterro para a construção do Porto do Rio, ocorrida no mesmo período das obras do prefeito Pereira Passos, já que ali havia o Saco de São Diogo. 

Inicialmente o carvão, importado da Inglaterra, chegava ao Gasômetro por ferrovia elevada sobre o Canal do Mangue, que o conectava ao porto. Depois, passou a chegar em chatas pelo canal, sendo transferido para a área de armazenamento por estruturas metálicas que atravessavam a avenida Francisco Bicalho. Por ali também eram escoados os resíduos industriais. Em 1967 o carvão foi substituído pela nafta e, em 1982, teve início o uso do gás natural vindo da bacia de Campos. Todos esses anos de armazenamento e manipulação desses produtos tão poluentes produziram a grave contaminação do solo do terreno onde se deseja construir o estádio. 

As maiores edificações do Gasômetro eram os três tanques circulares de armazenamento de gás e as estruturas metálicas que os sustentavam. Em 2000, em função da aproximação do momento de desativação do Gasômetro, a Prefeitura do Rio propôs o local como objeto do concurso de projetos organizado pela cidade de Santiago de Compostela. Os projetos de reutilização dos equipamentos lá existentes propunham a preservação dos tanques, dando-lhes novas funções, como cinema, biblioteca, shopping e habitação.

 

Apesar de serem marcos na paisagem local, os tanques de gás começaram a ser desmontados em 2006, fruto da miopia do governo Rosinha Garotinho, que desejava ver o terreno livre para a venda à iniciativa privada. Um deles ainda permaneceu por mais tempo, mas também acabou desmontado. Um grande equívoco, pois há diversos exemplos pelo mundo de reaproveitamento dessas estruturas para outros usos. Mesmo assim, ainda restam no terreno do Gasômetro elementos interessantes que deveriam ser avaliados antes de se passar o trator por cima de tudo.

 

Sem uma visita de técnicos da área do Patrimônio ao local, é difícil ter uma certeza sobre quantos e quais são os imóveis que mereceriam ser preservados no terreno. Há ainda pelo menos cinco prédios em tijolinhos aparentes, uma tipologia característica de edificações industriais europeias do início do século XX. Alguns são de dois pavimentos e outros com um único pavimento, no formato de galpões. O tratamento das fachadas tem influência do neoclassicismo, com pilastras, frisos, cornijas com dentículos e platibandas. Há também fachadas encimadas por frontões, sendo alguns deles em escadinhas. 



No centro do terreno do antigo Gasômetro há uma chaminé em tijolos aparentes, outra marca das antigas instalações industriais da cidade que se destacavam no horizonte. Ali próximo, no que foi a antiga fábrica da Brahma no Catumbi, também havia uma outra chaminé, implodida juntamente com a fábrica pelo próprio prefeito Paes em 2011. Em poucos minutos, 123 anos de história foram ao chão. Outra dessas chaminés permanece no início da avenida Brasil, onde antes existiu a Fábrica de Sabão Português.

Outro elemento vertical digno de nota é uma curiosa torre metálica, semelhante a um castelo de água, que poderia figurar em cenários de filmes retrofuturistas. E há o muro que circunda o terreno do antigo Gasômetro. Em tijolos aparentes, ele é muito bem construído e bem alicerçado. Como elemento contínuo que separa o espaço exterior do interior a sua permanência integral não seria benéfica a qualquer novo empreendimento na área. Mas, como vem marcando a paisagem local por tanto tempo, seria interessante a manutenção de uma parte dele.   

 

Por fim, não deve ser esquecido o antigo Hospital Frei Antônio, conhecido como Lazareto. Ele se encontra bem junto ao terreno do antigo Gasômetro, numa posição ligeiramente elevada, podendo ser visto de vários pontos de observação. Ele não será demolido, já que foi tombado em 1985 pelo Município do Rio de Janeiro. Mas o grande volume e altura do estádio que o Flamengo deseja construir certamente irão obstruir a visão do hospital. Como o IRPH pretende conciliar o estádio com esse bem tombado é uma incógnita.  

 

No Rio de Janeiro se costuma lamentar pelas perdas de bens do passado. A cidade já perdeu muito de seu maravilhoso Patrimônio. Mas é importante ter a consciência de que continua a haver projetos de renovação urbana pouco cuidadosos. Além disso, o menosprezo com o passado ainda está presente entre administradores públicos e políticos. É triste e revoltante, mas segue ocorrendo a perda do Patrimônio carioca e o atual prefeito tem sido um importante agente desse processo.

Artigo publicado no Diário do Rio em 08 de agosto de 2024.


Viajar é bom



Foto Roberto Anderson

Viajar é muito bom. Mas exige coragem. Coragem para ir em direção ao menos conhecido. Menos conhecido porque no mundo atual, já escrutinado em todos os seus quadrantes por milhares de viajantes, e cujas imagens nos chegam a todo momento, praticamente já não há o desconhecido. Coragem também para enfrentar os mais diversos quartos de hotéis, às vezes impessoais, apesar de algumas maravilhosas surpresas. E coragem para deixar a própria casa, o sofá, as plantas, que algum amigo irá regar, ou o animal de estimação, que se não tiver quem cuide, terá que ir para aquele hotel para pets.

Atualmente, viagens se apoiam em aplicativos de localização, de indicação dos melhores roteiros e trilhas, e das melhores atrações. Tudo isso dependendo do bom funcionamento das conexões de Internet. Há quem sempre esteja conectado, seja por poderosos provedores, seja por conexões via satélite. Mas boa parte dos viajantes ainda se move entre ilhas de conexão. A dos hotéis, a dos restaurantes e cafés, onde o primeiro pedido é a senha do Wi-Fi, e a de bibliotecas e museus. Fora isso é desconexão, incapacidade de recebimento de mensagens no momento em que são enviadas, abstinência saciada com sofreguidão a cada conexão alcançada.

Apesar da profusão de fotos disponíveis de todos os lugares, há sempre um ângulo novo e inusitado a ser descoberto. Mesmo os lugares mais visitados e fotografados só ganham concretude e compreensão para quem os visita quando se está ali, no instante em que, com os próprios olhos, se observa aquilo que tanto se queria visitar. Fotos ajudam a captar, mas a verdadeira apreensão do lugar só se dá com o auxílio de todos os sentidos, quando, então, imagens e sensações se inscrevem na memória. Memória essa que depois pode ir se enfumaçando, boa parte daquilo que um dia se viu ir se apagando, e acontecendo a misteriosa seleção do que jamais será esquecido. Um jamais limitado ao tempo da plena consciência que a vida a todos reserva.

Antes de tudo, há a parte prática da reserva das passagens, dos hotéis e pousadas, e dos eventuais guias. Mesmo quem se joga de forma mais aventureira dificilmente se livra de alguma preparação prévia, uma reserva de voo que seja. Reservas que exigem paciência, organização e, às vezes, até buscas noturnas pelas melhores ofertas. 

E tem a mala. A mala, a mochila, o necessaire, as sacolas com as compras que vão se acumulando e tudo o mais que se carrega. Já não há a frasqueira com os cremes e a maquiagem, mas há o celular, o carregador, a pochete dos dólares, o caderninho de notas, a impressão das passagens para quem confia pouco no digital...

Fazer a mala é uma arte. No início, ainda em casa, ela é feita até com certa calma. Os mais metódicos realizam essa tarefa com dias de antecedência. Mas, em meio à viagem, a mala é feita meio às pressas porque há o horário do check-out do hotel, o horário do trem, do ônibus ou do avião. São tantos prazeres numa viagem, tantas emoções e coisas importantes a serem lembradas que é preciso relegar as tarefas mais simples ao piloto automático.

Aí, quando chega a hora de relaxar um pouco, após o embarque, já dentro do trem ou do avião, vem a importunação da dúvida sobre o item que pode ter ficado esquecido no hotel. E ela pode acabar com o sossego do viajante. A escova de dentes foi guardada? As sandálias estão na mala? O carregador do celular não ficou para trás, espetado na tomada, que em muitos quartos de hotel é num lugar escondido atrás de uma mesa, justamente para provocar o esquecimento? Donos de pousadas devem ter um negócio paralelo de comercialização de carregadores esquecidos.

A dúvida só se dissipa na abertura da mala na escala seguinte. Em geral, o item que se imaginava deixado para trás está ali, bem guardado. O piloto automático ainda funciona bem e a viagem pode prosseguir. Mais caminhadas exaustivas, novos conhecidos pelo caminho, perrengues diversos, o medo do assalto, mas sempre a delícia de novas descobertas. Boa viagem. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 01 de agosto de 2024.