domingo, 8 de setembro de 2024

Queimadas nos pulmões

 

Agosto foi mês de desgosto, pelo menos no que se refere ao absurdo aumento das queimadas país afora. Brasileiros, como cada um de nós, por avidez ou ignorância, estão pondo fogo nas matas e plantações. A Amazônia está em chamas. Arde o Pantanal. Minas, São Paulo e Goiás, centros do agronegócio, estão em combustão. Na comparação entre agosto de 2023 e o de 2024 houve um aumento de 144% nas queimadas no Brasil. Na Amazônia o aumento foi de 83%. Tudo provocado pelo homem daninho. 

Os poéticos e benfazejos "rios voadores", uma faixa flutuante que atravessa o país de Norte a Sul carregando umidade, se transformaram em rios de fuligem. Fuligem da vegetação queimada, das árvores incineradas, das aves e mamíferos calcinados, do nosso futuro sendo dilapidado. E o destino dessa fumaça são os nossos pulmões. Não importa se você mora no litoral ou no interior, a fumaça alcança o seu nariz. 

O céu escureceu em cidades do Pantanal e da Amazônia. Uma névoa escura tomou conta de São Paulo e Rio. Quando a fumaça chegou a Brasília, as autoridades de saúde sugeriram o uso de máscaras. Já era tarde para as milhares de crianças com acessos de bronquite. Para os que tiveram que passar horas na nebulização. Para os que trabalham nas ruas respirando esse ar maléfico. 

Nas últimas décadas o movimento ambiental tentou salientar o papel das cidades na construção da sustentabilidade. No Brasil, por exemplo, a maioria da população já vive em cidades. No entanto, a vastidão do campo e das florestas impôs a sua avassaladora presença. Quando elas queimam, queimamos todos. 

As queimadas vêm num momento crítico, quando uma terrível seca castiga o Brasil. Os efeitos do aquecimento global se fazem sentir com força por aqui. A pátria das águas, dos rios caudalosos, dos córregos, dos meandros, dos igarapés e das veredas está secando. Corremos o risco de dizer adeus às nascentes, ao frescor dos rios, às sombras das matas. A ganância põe tudo a perder.

Agosto foi um desgosto. Bem pior se anuncia setembro.

Artigo publicado em 05 de setembro de 2024.

 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O panfletinho

O cara pegou o panfleto, olhou com raiva para quem lhe entregou, amassou o papel de forma a que sua ação fosse vista, e jogou-o no chão. Chato isso, não? Mas é parte do jogo. É hora de campanha eleitoral, momento de tentar convencer os eleitores a prestarem atenção no candidato que se crê bem-intencionado e com vontade de mudar o mundo pela via eleitoral. 

O panfleto em questão traz informações sobre a trajetória do candidato, suas propostas, as personalidades conhecidas que o apoiam e suas fotos. É até bonitinho, bem diagramado, e com um português correto. Diferente de certos panfletos que circulam por aí com diagramações pavorosas, refletindo seus conteúdos reacionários. Distribuir panfletos é uma arte. É preciso saber cumprimentar o passante, captar a sua atenção, e conseguir que ele aceite levar um exemplar. Se será lido com um mínimo de atenção é a grande incógnita de toda essa maratona. 

Uma senhora o aceita e sorri. Um senhor logo atrás também. Mas a senhora seguinte não. E, como numa reação em cadeia, os próximos passantes que presenciaram a rejeição também o rejeitam. Há um certo comportamento de manada entre as pessoas e é preciso recomeçar, conquistar alguém que aceite, e torcer para que a onda de aceitação dure pelos próximos passantes. E assim segue o entregador de panfletos, alguém que não pode ter baixa estima...

Um casal que se aproxima é o próximo alvo. Ele, com cara fechada, recusa. Mas, como é comum acontecer, ela aceita o panfletinho. É como se aquele pequeno ato fosse a reafirmação da sua independência frente ao companheiro. Outra senhora puxa conversa, quer saber mais detalhes. Ouve atentamente e ao fim promete que seu voto foi conquistado. Mas, sabe-se que isto irá durar até o próximo convencimento pelo cabo eleitoral do candidato concorrente. Até o dia da eleição há um longo caminho a ser percorrido. 

Após ser aceito e rejeitado por tantas mãos, o panfletinho do candidato foi aceito por um desatento morador de rua. Ele apenas pega o papel enquanto passa puxando seu carrinho de feira meio vazio. Sequer olha para ver do que se trata. O panfletinho é jogado no carrinho e lá fica, sobre a grade metálica. De vez em quando uma brisa levanta suas pontas, tentando fazê-lo voar para a rua. Mas ele segue no carrinho, sendo puxado por calçadas, ruas e praças. 

Outras coisas vêm se instalar junto ao panfletinho. Latas de alumínio vazias, jornais, uma bermuda velha, uma quentinha já comida pela metade. O morador de rua roda por muitos lugares, atravessa bairros da cidade e, finalmente, para embaixo de uma marquise. O homem tem muitas tarefas a executar. Separar a traquitana que juntou durante o dia, preparar a cama na calçada, comer o resto da quentinha. Por fim, já não tendo mais o que fazer, ele lembra do panfletinho. Pega-o com as mãos de unhas enegrecidas, olha as fotografias e, com o pouco de leitura que aprendeu quando criança, vai tentando entender do que se trata. 

Ele lê palavra por palavra, às vezes soletrando as letras. Juntando as frases com paciência, acha que compreende o que ali está contido. Aquele pedaço de papel fala da condição de vida dos pobres, gente como ele. Fala do descuido com a cidade, o que ele percebe em suas andanças diárias. Fala do descaso com o meio ambiente e do aumento da temperatura, coisa que ele bem sabe ser verdade, pois os dias estão cada vez mais quentes nas ruas onde vive. 

Uma frase lhe chama a atenção. Fala da necessidade de se olhar para o crescente número de pessoas vivendo nas ruas, sem condições de higiene e segurança. Ele sente que é sobre ele que aquilo foi escrito. A emoção lhe umedece os olhos. Alguém se importa. Dobra com cuidado o panfletinho e guarda-o no bolso da camisa. Esse pedaço de papel não irá se juntar aos jornais velhos que ele venderá para o homem da reciclagem. Seguirá com ele, pelo menos até que a camisa velha se perca por aí.

Artigo publicado em 29 de agosto de 2024 no Diário do Rio.