quinta-feira, 16 de julho de 2020

PLC 174/2020 – A legislação urbana na barraca da feira

Painel de votação da 47ª Sessão Extraordinária da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro
Para que temos regras urbanísticas se elas são quebradas insistentemente? Veja a orla de Ipanema, inicialmente com prédios de mesma altura, em torno de cinco pavimentos. Depois o prefeito Marcos Tamoio criou a possibilidade de construção de espigões à beira mar. Estes só foram controlados quando se percebeu que projetavam sombra sobre a areia, destruindo o prazer do banho de sol e de mar, origem da valorização daqueles terrenos. Em seguida as exceções em altura para os hotéis. E o resultado é uma linha disforme, em que o poder do capital e as artimanhas dos governantes do momento definem a paisagem da cidade.

Outra forma de burla à legislação é a constante reedição da “mais valia”, a possibilidade de legalizar, mediante pagamentos, os acréscimos, puxadinhos e fechamentos irregulares de varandas dos prédios da cidade. Todos os que realizam obras ilegais já o fazem na expectativa da próxima reedição dessa regra perniciosa e puramente arrecadatória. O Prefeito Crivella inovou nesse quesito, criando a “mais valerá”, em que o infrator paga antes de executar. É a monetização da ilegalidade. Já na planta o infrator informa que não respeitará a legislação e, pagando uns cobres, fica tudo bem.

Agora o mesmo prefeito quer ampliar em muito o instituto do “mais valerá”. Usando a pandemia da Covid-19 como desculpa para a necessidade de arrecadar, Crivella encaminhou à Câmara de Vereadores o Projeto de Lei Complementar 174/2020 que vira de cabeça para baixo a legislação urbanística da cidade, jogando no lixo todos os parâmetros estabelecidos, e aumentando indiscriminadamente gabaritos das edificações e taxas de ocupação dos terrenos. A legislação urbana é colocada na barraca da feira: toda infração tem um preço. É um desastre que foi duramente criticado por diversos órgãos da sociedade civil.

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU-RJ afirma que “A aprovação do PLC 174/2020 representa ameaça de danos irreversíveis à paisagem carioca, que ostenta título da Unesco de Patrimônio Cultural da Humanidade, sob o argumento de emergência da pandemia e da crise financeira que assola a municipalidade. A adoção de tal expediente avança em lógica perversa para a cidade, sem avaliações sobre suas consequências para a infraestrutura urbana e o ambiente construído como um todo. O PLC carece ainda de mecanismos que possibilitem o controle do poder público sobre a valorização extraordinária de determinadas áreas ou imóveis”.

Também o Instituto dos Arquitetos do Brasil- IAB-RJ se posiciona contrariamente ao PLC: “(…) No caso em apreço, afirmase que nunca se viu uma tentativa tão drástica de desconhecimento de todo o arcabouço legislativo urbanístico e edilício na história da nossa cidade, na medida em que o referido Projeto de Lei altera índices e condições de quadras inteiras com impacto em conjuntos de quadras.” (…).

E o Fórum de Planejamento Urbano do Rio - FPU, movimento que congrega inúmeras entidades da sociedade civil, especialmente associações de moradores da Cidade, entidades profissionais, e entidades da sociedade civil, contesta as condições em que se deu a tramitação do projeto e a audiência pública, em meio a uma pandemia, sem efetiva participação da sociedade. O FPU ainda afirma: “A matéria tratada no PLC 174 (...) é, obviamente, matéria de caráter urbanístico, e que altera legislação de uso do solo, índices do Plano Diretor, cobrança de contrapartidas por Outorga Onerosa (sob o codinome de mais valerá), zoneamento, e até a Lei Orgânica do Município; daí sua formatação em lei complementar. E mais: declara uma vertente financeira/arrecadatória de seus fins, a caracterizar um desvirtuamento da finalidade constitucional da política urbana, consignada no art.182 da Constituição Federal que diz que: ‘A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, (…) tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes’.  Portanto, usar leis urbanísticas – sobretudo temporárias – com fins financeiros-arrecadatórios, a justificar a motivação de um projeto de lei urbanístico, constitui flagrante desvio das finalidades constitucionais da lei urbanística em questão.  Impõe lembrar que a Constituição Federal estabeleceu que cabe ao sistema tributário a finalidade fiscal de arrecadar tributos e outros recursos para financiamento e atendimento das necessidades básicas da população da cidade. Por mais crítica a situação atual, não é cabível distorcer o planejamento urbano para este fim, especialmente em situação de funcionamento de exceção de seus órgãos executivo e legislativo”.

Pois, ignorando todos os apelos em contrário, o PLC 174/2020 acaba de ser aprovado em primeira votação na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. O que move o prefeito e os senhores vereadores? Por que se lixam para nossa paisagem? É preciso compreender que o verdadeiro negócio da cidade, aquele que o cidadão comum não percebe, e onde fortunas são formadas, é a venda de imóveis, incorporando valorizações ocorridas por meio de obras públicas, e conquistando metragem adicional por meio de alterações e exceções na legislação. Às vésperas de uma eleição, em que tanto o prefeito, quanto os vereadores desejam se reeleger, a ajuda do capital imobiliário deve ser muito bem-vinda. Perde a cidade, perdemos quase todos. Mas, com certeza, alguns ganham.

Texto publicado em 16 de julho de 2020 no Diário do Rio

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