segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Habitar o Centro

Rua Camerino - foto Roberto Anderson
A ampliação da moradia no centro do Rio de Janeiro já era algo desejável, muito antes da atual pandemia. No entanto, os efeitos advindos da necessidade de manutenção do isolamento social, aliados à percepção das facilidades do teletrabalho (home office), estão anunciando uma drástica redução da atividade comercial no Centro. Isso deve acarretar a ociosidade de uma enorme quantidade de espaços voltados para escritórios e empresas. Sua transformação em moradias pode ser uma solução para esse novo problema e para a qualidade de vida na cidade.

Ter mais pessoas morando na área central é algo que deve ser buscado com afinco pela administração municipal, uma vez que traria um benefício enorme à cidade. Já estão superadas as teses funcionalistas de que o Centro não é adequado à habitação, e a absurda legislação municipal que a impedia foi alterada na administração Luiz Paulo Conde. No entanto, ainda não se viu ali uma mudança significativa em termos de novos empreendimentos com esse propósito. A existência de moradia permanece apenas em alguns setores onde ela é mais resistente, como a Cruz Vermelha, o Bairro de Fátima e a Avenida Beira Mar. O último grande lançamento habitacional na área foi o Cores da Lapa, finalizado em 2008.

Há muitas oportunidades para se ocupar com residências o coração do Centro, como o Quadrilátero Financeiro, entre a Praça Pio X e a Avenida Nilo Peçanha, a própria Avenida Rio Branco, além de áreas próximas, como o Castelo, a Saara, a Cinelândia, a Lapa, e o entorno do Campo de Santana. Se a estas áreas acrescentássemos o potencial, até aqui não realizado, da Área Portuária, do Caju e de São Cristóvão, teríamos um volume de oferta de moradias capaz de provocar uma verdadeira revolução na ocupação do território da Cidade do Rio de Janeiro. Não mais a atual fuga em direção às bordas do tecido urbano, num indesejável crescimento espraiado, mas a realização do ideal de cidade compacta. Diferentes estratos sociais poderiam encontrar na área central respostas a suas demandas por habitação.
  
Morar no Centro teria diversas vantagens. Para a futura população há o fato de deixar a dependência excessiva de meios de transportes já sobrecarregados, com baixa qualidade de conforto e pontualidade. Eles são caros e sugadores de suas horas de lazer. Além disso, passariam a habitar uma região com boa infraestrutura, parques, excelentes equipamentos culturais, escolas e hospitais. Para a cidade, haveria a extensão das horas de utilização do Centro, com ganhos efetivos em termos de segurança e investimentos, como comércio e serviço para os novos habitantes. Um ganho extra seria a reforma e melhoria na manutenção do conjunto de edificações já antigas ali existente.

Algumas propostas podem contribuir para a conquista desses objetivos:

-          Aplicação de incentivos fiscais para a criação de unidades habitacionais no Centro. Tais incentivos deveriam ser capazes de levar os proprietários de diversos imóveis fechados, e de sobrados subocupados, como na Saara, a colocarem-nos à disposição para o uso habitacional.
-          Utilização de imóveis públicos, especialmente os grandes imóveis federais presentes no Centro, para, através da reciclagem ou edificação, passarem a servir como habitação.
-          Retomada do programa Novas Alternativas, da SMH, de adaptação de sobrados e demais edificações antigas para o uso habitacional.
-          Desapropriação e colocação no mercado de imóveis em processo de deterioração. Há no Centro do Rio uma quantidade fabulosa de imóveis pertencentes a proprietários desconhecidos, famílias empobrecidas e entidades religiosas, que vêm se deteriorando ao longo de décadas, sem uso, e sem que os proprietários consigam mantê-los. Só a intervenção decisiva do poder público poderia mudar tal situação.
-          Aplicação do IPTU progressivo e da edificação compulsória a terrenos vazios, instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, porém não regulamentados na Cidade do Rio de Janeiro. São constrangimentos aos proprietários que mantêm vagos esses terrenos para efeito de especulação, entre eles o próprio poder público. Pode parecer inusitado, mas há um imenso estoque de terras na área central do Rio, seja na Av. Presidente Vargas e adjacências, na área da Praça da Cruz Vermelha ou na Área Portuária.

O Centro do Rio, apesar dos investimentos em cultura e lazer ali realizados, à noite, é um local inóspito, abandonado à própria sorte, e submetido à ação de predadores. Esse é o resultado de um modelo de urbanismo já ultrapassado, que separava as funções na cidade. Apesar de superado, seus efeitos danosos permanecem e precisamos encarar o fato de que são necessárias políticas públicas voltadas para a reversão desse quadro. É preciso visão e coragem para aplica-las, o que até o momento tem faltado a nossos administradores. Se bem conduzido, esse seria um programa digno da Cidade Maravilhosa.

artigo publicado no Diário do Rio em 23/07/2020

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