sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Mudanças em imóveis tombados e em outros...

Largo do Boticário - foto Roberto Anderson
Na semana que passou, a Câmara de Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLC) 136/2019, que trata da possibilidade de reconversão de uso de imóveis tombados e preservados na cidade. Ele se tornou a Lei Complementar (LC) nº 232, de 07 de outubro de 2021. Esse é um assunto que vem frequentando o noticiário e as discussões de arquitetos e urbanistas há algum tempo. Como pano de fundo está a situação de centenas de imóveis preservados na cidade, cujos proprietários alegam falta de recursos e de condições para mantê-los. A possibilidade de mudança de uso vem sendo apresentada como uma possibilidade de facilitar a solução de tais problemas, já que o uso residencial, especialmente quando unifamiliar, teria se tornado antieconômico.

Uma lei anteriormente aprovada, que permitiu a reconversão de uso dos imóveis do Largo do Boticário, é vista como uma experiência bem-sucedida, em relação aos objetivos acima citados. Atualmente o conjunto de casas do Largo do Boticário, que antes estava em franca deterioração, passa por uma obra que o transformará num hostel de padrão mais elevado, teoricamente viabilizando a sua manutenção. Se as casas devem se salvar, é possível que os vizinhos ainda venham a reclamar muito.

Em princípio, a mudança de uso de bens tombados ou preservados é uma ocorrência normal na vida útil dos mesmos. A vedação de mudança de uso a que os bens estavam submetidos era oriunda de restrições do zoneamento urbano da cidade. A LC 232/2021 viria assim abrir brechas nesse zoneamento, que permitissem tais alterações. É importante lembrar que o valor de Patrimônio de uma edificação, na maior parte dos casos, está na edificação em si, e não no seu uso. Igrejas podem se tornar teatros sem perderem relevância, residências podem se tornar escritórios. O que importa é a presença do bem na paisagem urbana local. Mas atenção, o PLC não cria restrições de novos usos para os bens tombados, o que poderá se mostrar problemático no futuro.

A LC 232/2021 ainda permite o fracionamento do imóvel original em unidades independentes, o que permitiria transformar um casarão unifamiliar em um imóvel com diversos apartamentos. Em tese, essa é também uma alteração aceitável, sempre se analisando caso a caso, pois não é possível haver uma regra geral para tais adaptações. Mas ela não seria uma intervenção aceitável caso implicasse em alterações substanciais na volumetria, nas fachadas, na estrutura do imóvel e na sua divisão interna. É sempre importante lembrar que, tanto a técnica construtiva, quanto as configurações dos espaços internos são também elementos portadores de valor de Patrimônio.

A LC 232/2021 até menciona a necessidade de respeito a esses elementos e a necessidade de aprovação das intervenções nos órgãos de Patrimônio. Mas atualmente tais órgãos estão bastante fragilizados, e a pressão dos empresários interessados será no sentido contrário àqueles cuidados. O Iphan passou por intervenções no governo Bolsonaro, que nomeou diversas pessoas alheias ao assunto Patrimônio para sua direção. Já o Inepac sofreu a ação de um interventor, bolsonarista de raiz, lá colocado pelo governador Witzel, que expulsou os técnicos que formavam a espinha dorsal do órgão. O interventor já não mais lá se encontra, mas os efeitos da sua ação destruidora ainda permanecem. 

Há um ponto na citada LC que merece toda a atenção, por ser um item que pode trazer consequências indesejáveis. Além da conversão de uso, é incentivada a construção de novas edificações nos terrenos dos imóveis tombados, por meio de diversas isenções de limites dos índices de ocupação. A aprovação dessas novas edificações, conquanto possível, só deveria se dar após uma análise extremamente rigorosa dos projetos a serem propostos, de forma a minimizar os impactos nas ambiências desses bens. Este item será sempre uma prova de fogo para a capacidade dos órgãos de Patrimônio de bem avaliarem os projetos propostos.

Por fim, a LC 232/2021 abre a possibilidade de reconversão para o uso multifamiliar, assim como o fracionamento em unidades autônomas, de todas as edificações que estejam situadas em áreas atualmente classificadas como Zonas Residenciais Unifamiliares, sejam elas protegidas por razões de Patrimônio ou não. Isso suprime, na prática, a existência de zonas unifamiliares em bairros, como Botafogo, Gávea, Alto da Boa Vista, Grajaú, Jacarepaguá e Santa Teresa.

A lei, que trata de imóveis tombados ou preservados, num de seus capítulos legisla sobre zoneamento urbano, se sobrepondo ao Plano Diretor. Aqui no Rio de Janeiro já se tornou usual os projetos legislativos trazerem esse tipo de contrabando. Foi o caso do Reviver o Centro, que também legislou sobre gabaritos de imóveis colados nas divisas no restante da cidade, alterando a Lei Orgânica do Município. O fato é que a nova legislação trará oportunidades de grandes mudanças nos imóveis tombados e preservados da cidade, assim como nos imóveis unifamiliares, mas também grandes desafios projetuais. Alguns efeitos poderão ser benéficos. Mas, certamente veremos alterações polêmicas pela frente.

Artigo publicado no Diário do Rio em 30 de setembro de 2021 (atualizado após a promulgação da Lei).

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