quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Ano Novo na Ilha

Ilha do Governador - foto Roberto Anderson
A areia da praia tinha muitos sargaços. E placas de piche. Em casa, na borda do tanque sempre havia uma lata de varsol, para remover as manchas que ficavam grudadas na planta do pé. As placas mais grossas eram retiradas com gravetos catados na calçada da praia mesmo, na hora de ir embora. 

O fundo da água era lodoso. Pisava-se em algo que afundava, e em mais sargaços, que se enroscavam nas pernas. Melhor era não pisar, mergulhar e sair nadando assim que a altura da água permitisse. Ou então entrar já sentando nas boias de pneus de carros, que eram trazidas de casa, penduradas no ombro, rua afora. Na superfície da água, aqui e ali manchas de óleo formavam as cores do arco-íris, lembranças deixadas pelos barcos petroleiros. 

Era a Praia da Freguesia, na Ilha do Governador, com sua areia grossa, a mureta separando a praia da calçada, e as amendoeiras, algumas parecendo centenárias. Era o quintal de casa, o lugar para passar as tardes ouvindo as conversas dos outros adolescentes, com os quais, por timidez, não era fácil interagir. Onde as horas eram gastas depois da manhã no Colégio Mendes de Moraes. 

A vida seguia numa tranquilidade e previsibilidade exasperantes. Nada acontecia de novo. As manhãs eram de aulas. Após o almoço, o dever de casa. Depois, aquela assuntada nas conversas do grupo na mureta da praia. E tinha o vôlei no terreno baldio, que havia sido limpo pelos vizinhos. Aos domingos, se assistia a missa na igreja da praça. Para variar um pouco, havia as caminhadas solitárias pela orla, buscando bairros mais distantes, caminhos sinuosos e arborizados que a Ilha oferecia. 

Mas algo bem diferente acontecia na véspera de ano novo. À tarde, grupos de pessoas vestidas de branco, vindas de longe, começavam a chegar e logo iam ocupando diversos pontos da praia. Traziam flores, muitas flores, velas, bebidas, charutos, tendas, panos e bancos. Delimitavam seus espaços e começavam a organizar os preparativos para mais tarde. 

Ao anoitecer, tudo havia mudado, a praia já estava tomada por vários terreiros. As mulheres com suas saias rodadas, guias e turbantes. Os homens mais discretos, mas igualmente de branco e com guias multicoloridas. Um deslumbramento. Logo, oferendas começavam a ser levadas ao mar. As flores, os perfumes derramados, as garrafas de cerveja, vinho e champanhe barato esvaziadas sobre a espuma das ondas. E a areia se enchia de curiosos e de pessoas que faziam filas para tomar um passe. 

Algo de sobrenatural se mostrava ali na areia. Nada parecido com a vida cotidiana. Santos baixavam em moças e senhoras, que dançavam e se contorciam, falando palavras, frases que não se entendia. Se ameaçavam cair, eram amparadas e levadas para dentro das tendas. Também acontecia de alguém que apenas assistia, subitamente ser arrebatado e manifestar a presença do santo. 

O som constante dos cantos e dos atabaques envolvia, tocava algo profundo, difícil de compreender. O corpo parecia querer entrar no transe, se deixar levar pelo desconhecido. Mas o medo, ou a razão, era maior e um passo era dado para trás, para fora da roda da assistência, para longe dos sargaços do fundo do mar. 

Mais seguro era andar entre as rodas, ver de longe, passear por entre as velas acesas em buracos cavados na areia. As pequenas luzes contrastavam com o mar escuro, de pequenas marolas que batiam na areia. Quando visto de longe, a noite dominava. Se fogos havia, eram para Iemanjá. Afastando-se, os atabaques ficavam mais distantes, as rodas dos terreiros menos visíveis, toda aquela movimentação menos presente. Ao voltar para casa o calendário já havia mudado, já era o novo ano.

artigo publicado em 30 de dezembro de 2021 no Diário do Rio.

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