terça-feira, 1 de março de 2022

A praia

Praia de Boa Viagem - foto Roberto Anderson
De manhã, o movimento começa devagar, no ritmo dos ajudantes, alguns bem jovens. Eles vão chegando sonolentos, o ônibus demorou a passar, o café foi engolido às pressas, e a viagem foi longa. Ja na areia, vão preparando o terreno para o trabalho. Mesas e barracas são fincadas na areia, à espera dos fregueses. Na maioria das praias do Nordeste, e mesmo em algumas do Sudeste, a areia é previamente loteada pelos barraqueiros. No Rio, eles se limitam a organizar as tendas onde vão trabalhar. A colocação de cadeiras e barracas é sob demanda. 

Se o sol ajudar, durante o dia o movimento vai pegar fogo. A freguesia vai aparecer e vai ser disputada. Cada casal sentado, cada grupo de amigos que pede duas mesas, é promessa de bom faturamento no dia. Os ajudantes vão correr pra lá e pra cá, vão oferecer o céu e a terra, vão tratar o cliente de meu rei.

Mais atrás, na calçada da praia, são os quiosques que vão levantando portas. Mambembes pelo tempo, com puxadinhos quando dá, e lonas já desbotadas. De Norte a Sul, o cardápio é quase sempre o mesmo: pizzas, hambúrgueres, camarões fritos, e sanduíches de queijo. As variações são as tapiocas, onipresentes no Nordeste, o açaí ou a caipirinha. Em todos, quem reina é a água de coco e  a cerveja gelada.

Junto à calçada da praia, às vezes há ciclovias. As pistas dos automóveis, em geral, são estreitas para o grande movimento. São resquícios de uma ocupação descuidada, sobre a vegestação de restinga, quando a cidade era uma vila e a praia algo distante ou pouco valorizado. Para corrigir, algumas cidades, como o Rio no passado, e Balneário Camboriú agora, fazem obras gigantescas de aterramento do mar, com duplicação das vias e extensão das faixas de areia. O mar empurrado para longe, como em Copacabana. Um dia ele volta. 

Atrás, vêm as construções. Se são casas, já imaginamos sua demolição futura, para serem substituídas por edifícios de apartamentos. Se são pequenos edifícios, sabemos que sua hora está próxima. Adeus prédio onde morou JK em Ipanema, adeus predinho onde morou Caetano Veloso. O progresso vem com os tratores. A regra nas grandes cidades é o paredão de edifícios que sombreia a areia, que barra o vento, que esconde a paisagem. É o modelo Copacabana.

Uma louvável exceção é a legislação da Paraíba, que define uma faixa de quinhentos metros, a partir da linha de  preamar de sizígia, como Patrimônio cultural, ambiental, paisagístico, histórico e ecológico. Nessa faixa costeira, onde já ocorreu o loteamento, os edifícios seguem um escalonamento de altura, que vai de treze metros na borda próxima ao mar, a trinta e cinco metros nos fundos. Como resultado, se obtém uma paisagem mais harmônica, que permite a passagem dos ventos e o usufruto da paisagem, mesmo que parcial, por quem mora mais atrás. 

Paga-se caro pelo privilégio da vista marinha, com as desvantagens de  trânsito intenso na porta, a rápida corrosão dos eletrodomésticos pela maresia, e a incerteza de como ocorrerá o avanço dos mares com a crise climática. E também uma certa bagunça dos quiosques, barraqueiros, teombadinhas e arrastões. 

Ao fim do dia, é hora de desmontar a parafernália. Cadeiras e guarda-sóis precisam ser guardados. A freguesia já se foi, o gelo derreteu, quem vendeu, vendeu, quem pouco vendeu vai tentar recuperar no próximo dia. É hora de relaxar, trabalhar falando sacanagem, tirando sarro do amigo, discutindo o futebol. E dá pra paquerar as meninas que correm no calçadão. Põe música aí no rádio, faz uma dancinha! O freje corre solto, importuna os vizinhos bacanas. Beleza, a praia ainda é democrática.

artigo publicado em 17 de fevereiro de 2022 no Diário do Rio.

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