sexta-feira, 28 de junho de 2024

Onde está o guarda?


O Rio já teve guardas de trânsito. E alguns eram memoráveis. Eles tinham postos fixos, em cruzamentos de tráfego mais intenso de veículos, ou em portas de escolas. Assim, se tornavam conhecidos da vizinhança, que muitas vezes sabia seus nomes. Eles davam bom dia aos passantes, ajudavam os mais velhos a atravessar as ruas e paravam o trânsito para as crianças chegarem às portas das escolas.  

Alguns desses guardas foram temas de matérias de jornais e TVs, fosse pela gentileza que demonstravam com as crianças e os idosos, fosse pela coreografia que executavam, usando braços, torções de corpo e expressões faciais para dar passagem aos veículos que cruzavam em diversas direções. O apito que sempre traziam à boca marcava a sonoridade da cidade. 

Eles também sabiam ser temidos, especialmente quando sacavam suas cadernetas para anotar a placa de um veículo infrator. Ao ver o guarda se aproximar pelo retrovisor, motoristas parados em locais proibidos logo ligavam seus carros tentando sair dali. 

 

Alguns guardas eram acessíveis e, no caso de uma anotação, até valia à pena sair do carro e ir a pé até eles, uma demonstração de humildade, para explicar que o sinal havia fechado repentinamente, que o estacionamento em local proibido se devia a um caso de extrema necessidade, ou que a falta de documentos era em função da saída apressada para resolver um caso de doença na família. 

 

Tais argumentos, muito batidos, às vezes, surpreendentemente, eram capazes de reverter a anotação. Saber ouvir calado uma preleção fazia parte da tentativa de escapar de uma multa. O “seu” guarda era camarada e tudo terminava em juras de que a infração nunca mais ocorreria. 

 

Se os argumentos não tivessem a força necessária para anular a infração, uma ajuda financeira passada com discrição, em certos casos, também ajudava. Esses eram os venais que não aliviavam a punição, mas baixavam consideravelmente o seu valor, desde que o desembolso fosse imediato, e para eles. Essa prática, bastante generalizada, não era entendida, ou percebida, como corrupção, uma vez que esta era somente o que acontecia nos gabinetes dos políticos, e que todos, claro, condenavam.

 

De qualquer forma, no trânsito da cidade havia guardas de trânsito que buscavam reduzir a confusão a níveis suportáveis e que mantinham a rebeldia do motorista carioca em patamares aceitáveis. Hoje eles simplesmente sumiram. Os policiais que patrulham as ruas só se preocupam com crimes e seus celulares. Se não veem pequenos delitos, como a vandalização de uma cesta de lixo ou o roubo de fios, como veriam infrações de trânsito? 

 

Atualmente, câmeras controlam se o motorista invade as faixas exclusivas de ônibus, ou se passa acima da velocidade permitida em certos locais. Câmeras implacáveis que, num flash, capturam a imagem do veículo e já enviam a multa para o endereço do infrator. Mas elas só existem em locais específicos, em corredores de tráfego mais intenso. Nas demais ruas o carioca se sente livre para parar em locais proibidos ou em fila dupla, ou para subir em calçadas e invadir ciclovias. 

 

Há também o serviço terceirizado de guincho para recolhimento de veículos infratores a estacionamentos localizados nos locais mais inacessíveis da cidade, o pesadelo do motorista bandalheiro. Mas nada disso é capaz de coibir as infrações de trânsito, uma normalidade em terras cariocas. Elas prosperam como nunca, na certeza de que não surgirá no espelho retrovisor um guarda com sua temida caderneta.


Artigo publicado em 27 de junho de 2024 no Diário do Rio

sexta-feira, 21 de junho de 2024

As dunas verdes de Ipanema e Leblon

Olhando pelo prisma da conservação do meio ambiente, a recuperação de áreas de vegetação de restinga em praias urbanizadas Brasil afora já seria muitíssimo desejável. Porém, se olharmos pelo prisma da crise climática, uma realidade que já se faz presente entre nós de forma avassaladora e dramática, a restauração de dunas e desse tipo de vegetação no litoral é uma ação fundamental de defesa de nossas costas e das cidades que ali existem. A cada ressaca mais forte no Rio de Janeiro a água do mar invade as areias das praias litorâneas, se esparrama pelo asfalto, muitas vezes chegando até às garagens dos edifícios. Mas as dunas junto às calçadas de Ipanema, que há alguns anos foram refeitas e replantadas, resistem.

No entanto, elas praticamente haviam desaparecido. Por pouco tempo ainda existiram as dunas do vapor barato, uma formação artificial e temporária que durou enquanto o emissário submarino de Ipanema era construído. Elas se tornaram um marco na cultura da cidade e deixaram saudades. Depois, a praia de Ipanema permaneceu sendo um grande areal, como a de Copacabana. Sem vegetação rasteira, um ou outro coqueiro tentando sobreviver na areia quente, uma aflição.

Em 2009 teve início o projeto de recuperação de uma faixa de vegetação de restinga ao longo da calçada da praia. Seis mil metros cúbicos de areia foram remanejados para reconstituir junto às calçadas as dunas desaparecidas. Oito espécies nativas de restinga, como o feijão da praia, a perpétua e o capricho, foram utilizadas, num total de 38 mil mudas em 28 canteiros, que perfazem 10 mil m² de área plantada. O Instituto-E é o responsável pelo projeto, que já dura quinze anos com apoio financeiro da Osklen. Nesse longo período, quase um milagre em se tratando de política pública, foram despendidos R$ 2.800 milhões. Recentemente, o AirBnB e o Janeiro Hotel (antigo Marina) entraram como novos apoiadores dessa bela iniciativa, permitindo a sua continuidade e, quem sabe, a sua expansão.

Isso só foi possível graças ao sistema de adoção de áreas públicas por empresas ou pessoas físicas que, tanto a Fundação Parques e Jardins, como a Secretaria de Meio Ambiente (Smac) praticam. É um sistema muito vantajoso, em que não chega a haver uma concessão da área pública. Esta é uma questão muito em voga, especialmente com o discutível Projeto de Emenda à Lei Orgânica do Município do Rio n° 22/2023, do Vereador Pedro Duarte, do Partido Novo, que propõe que seja permitida a concessão ou cessão à iniciativa privada de parques e praças da cidade. Diferentemente da concessão, no sistema de adoção, como o das dunas de Ipanema, a cada dois anos o Instituto-E assina novo termo de adoção com a Smac, que mantém amplo controle sobre o que se faz, aprovando todas as ações a serem implementadas.

Apesar das dimensões do projeto, em termos de área de praia ocupada ele é mínimo. São faixas relativamente estreitas junto às calçadas, com as redes de vôlei colocadas no limite das áreas vegetadas, como se estivessem pressionando por sua redução. Da mesma forma, bombas de captação de água do lençol freático para resfriamento da areia das quadras de vôlei são instaladas nas suas bordas, o que não deve ajudar. No carnaval de 2011, superblocos de carnaval geraram o pisoteamento e vandalização dos canteiros pela imensa massa de foliões. O Bloco da Preta foi um dos que foi multado em função do ocorrido. Mas, chamados a tomar conhecimento do estrago causado, vários blocos participaram do processo de recuperação da vegetação.

Hoje as dunas de Ipanema e Leblon, com suas vegetações de restinga, estão plenamente consolidadas. Já se pode ver uma grande quantidade de mudas de coqueiros e outros arbustos crescendo por entre a vegetação mais rasteira. E já há registro de retorno de parte da fauna desses ecossistemas, como o besourinho-da-praia, o gafanhoto grande, a barata-do-coqueiro, o sabiá-da-praia, a coruja-buraqueira e a perereca. 

Voltando ao tema do aquecimento global, há simulações extremamente preocupantes sobre os efeitos da elevação do nível do mar no litoral carioca. Se a temperatura do planeta subir 2º C, situação que tende a ocorrer pela falta de ação dos países mais emissores de gases do efeito estufa, haverá perda de faixas de areia no Leblon, em Copacabana, no Flamengo e na Barra, além da inundação das pistas do Aeroporto Santos Dumont e nas áreas perto da Rodoviária. Mas, se o processo de aquecimento global entrar em descontrole e o aumento da temperatura global chegar a 4º C ou mais, aí vão se embora boa parte das praias, a Cidade Universitária, a Barra da Tijuca inteira, além de diversos bairros na Zona Norte e na Baixada Fluminense.

Então, é preciso pressionar os governantes para que tomem medidas contra o aquecimento global. É preciso torcer para que haja juízo suficiente que evite a catástrofe. Enquanto isso, podemos ir recuperando as dunas e as vegetações de restinga, além dos manguezais, do litoral brasileiro. Os projetos de Kongjian Yu, o arquiteto que formulou o conceito de Cidade Esponja, englobam a recriação de barreiras naturais no litoral para barrar o avanço dos mares. Exatamente como as nossas dunas recriadas e revegetadas.

Copacabana, com sua larga faixa de areia não inteiramente utilizada pelos banhistas, fruto de um engordamento artificial, bem que poderia ser a próxima praia a receber esse projeto. Lá, os coqueiros ainda sofrem nas areias quentes e desprovidas de vegetação.

Artigo publicado em 20 de junho de 2024 no Diário do Rio.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

A aldeia

R. Cardoso Junior - foto Roberto Anderson

Minha aldeia está situada num vale. Isto não a difere de outras aldeias dessa grande cidade, que se esgueira entre montanhas, ora subindo-as, ora ocupando esses vales com tantos edifícios, que a gente se esquece da sua geografia. Na praia, um deles tem um apartamento que chega a custar R$ 38 milhões. Mas não se compara a um edifício especial na minha aldeia. Ele tem um botão 12 no elevador, que era capaz de produzir satisfeitos sorrisos gerais quando Cássia ali chegava.

Um rio corre na parte central desse meu vale. Mas não é possível vê-lo, escutar o barulho das suas águas batendo nas pedras, nem ver pássaros às suas margens. O rio desse vale foi canalizado, enterrado em tubulações. E ainda há a podridão que é jogada em suas águas. Esta é tanta que ele foi oficialmente destituído da sua condição de rio, e jogado na podridão geral da cidade, para ser carreado por tubos mar adentro, até ultrapassar as ilhas avistadas de Ipanema. 

 

Mas, quando chove forte, o rio se insurge contra as tubulações que o apertam, explode tampas de bueiros, descasca o asfalto e jorra para a superfície, lembrando que ele existe, e reclama o seu leito natural. Ele tem personalidade forte, como os habitantes desta cidade que ele os nomeia.

 

Na minha aldeia as pessoas se conhecem, ou dão a impressão de se conhecerem. Elas dão bom dia, se encontram nas rodas de samba e de chorinho, na feira e nos supermercados. Elas parecem ser um pouco mais relaxadas que as de outros locais da cidade. Talvez porque, apesar de verem passar caravanas de turistas em direção às atrações da cidade, sabem que eles não permanecerão. O povo daqui segue sendo mais ou menos o mesmo. Até os pedintes daqui, por anos a fio, são os mesmos.


Aqui ainda ecoa pelas ruas a voz grave do vassoreiro, o alto-falante do vendedor de pamonha, além do onipresente comprador de ferro-velho, que promete a tudo reciclar, embalado por um hino evangélico.

 

A minha aldeia, mesmo em tempos sombrios de exacerbação de falsos patriotismos e falsos moralismos, segue sendo o reduto mais fiel da esquerda. Um dia, daqui o pensamento progressista voltará a se expandir pelo Brasil afora, aquecendo corações e iluminando as mentes.

 

A minha aldeia tem nome de árvore frutífera, que se um dia abundou na região, hoje resiste apenas em certos canteiros de calçadas, onde abnegados plantadores de árvores cultivam algumas poucas mudas. O meu vale é até bem arborizado, mas sempre queremos mais. E ai de quem tentar arrancar uma árvore! O último comerciante forasteiro que fez isso foi obrigado a conviver com uma linda muda de ipê na sua calçada, replantada pela Prefeitura a pedido dos moradores. 

 

A minha aldeia tem história. Ela tem sobrados que estão aí desde quando suas antigas chácaras deram lugar a loteamentos. E tem palacetes das famílias ricas de outrora, de quando a cidade era o centro dos negócios e da política. Hoje tudo é passado, fantasmas que assombram o nosso presente empobrecido. Fantasmas leves, diga-se de passagem. 

 

Na minha aldeia parece não haver ricos. É uma grande classe média que frequenta os botecos, que come pratos feitos, que toma chopp e cerveja com gosto. Talvez por isso não haja bons restaurantes. Nada aqui é gourmet. Mas começa a haver uma abundância de farmácias, como se quisessem nos impor a característica genérica de outros bairros. 

 

Como só há uma via para entrar e sair do vale, o trânsito aqui está ganhando ares de Botafogo ou Jardim Botânico. Mas é possível sonhar com um futuro antidistópico em que o rio terá seu leito devolvido à luz solar e bondes circularão próximos às suas bordas. E em que os netos dos atuais moradores sigam curtindo um chorinho na praça. Então, laranjeiras florescerão.


Artigo publicado no Diário do Rio em 13 de junho de 2024.

domingo, 9 de junho de 2024

Um estádio no gasômetro

Era o ano de 2000 e o Gasômetro do Rio ainda estava em funcionamento. Mas já se sabia que, com a chegada do gás natural, suas operações seriam sustadas. A Prefeitura do Rio, preocupada com o futuro daquele terreno de 119 mil m², colocou-o como objeto do concurso de projetos "O Modelo Europeu de Cidades", promovido pela cidade de Santiago de Compostela (Espanha). Na época, o Instituto Pereira Passos dizia querer montar um banco de projetos para a região.  

Vinte e seis escritórios apresentaram propostas, tendo sido selecionadas três para a fase final. Entre estas, os projetos da arquiteta baiana Naia Alban e do arquiteto Washington Fajardo. Eles tinham em comum a preservação das antigas torres com tambores de armazenamento do gás, dando-lhes novas funções, como cinema, biblioteca, shopping e habitação. O projeto de Fajardo, numa visão respeitosa com o Patrimônio, ainda preservava os edifícios em tijolos aparentes lá existentes, construídos pelos ingleses no início do século XX.

 

É cada vez mais comum a reutilização de estruturas industriais, reconvertidas para outros usos. O próprio Gasômetro de Porto Alegre foi transformado em espaço cultural. Em diversos países existe a reutilização de tambores de gás e de silos de armazenamento de grãos, para fins habitacionais ou outros. E nas faculdades cariocas de arquitetura, incontáveis projetos foram desenvolvidos para o nosso gasômetro, justamente repensando novos usos para aquelas estruturas que por tanto tempo marcaram a paisagem daquele local.

 

Uma grande oportunidade se perdeu, mais uma. Atualmente as torres já não existem, demolidas não se sabe por que razão. Somente persistem os edifícios em tijolinhos, uma chaminé e uma curiosíssima torre metálica, semelhante a um castelo de água. Vizinho ao terreno, num ponto um pouco acima, se encontra o antigo Hospital Frei Antônio, conhecido como Lazareto, um belo edifício do século XVIII que domina a paisagem, e que um dia já esteve à beira do Mangal de São Diogo, um braço alagado do saco do mesmo nome que chegava até ali.

 

Com o fim das operações da companhia de gás, constatou-se que o terreno tinha seu solo muito contaminado por décadas de contato com produtos químicos. Uma empresa de descontaminação chegou a ser contratada para esse serviço e espera-se que tenha tido sucesso. Parte do terreno do Gasômetro foi desmembrado para dar lugar ao terminal do BRT, o Gentileza, originalmente previsto para as imediações da Central do Brasil.

 

Agora o prefeito se bate para ver realizado o projeto de construção de um estádio do Clube Flamengo. Dizer que o prefeito se bate pelo projeto é bem apropriado, uma vez que ele até se dispõe a desapropriar o terreno para ver o projeto ser concretizado. Muito conveniente num período eleitoral, afinal trata-se da maior torcida do país, e agradar os dirigentes daquele clube, mesmo que o projeto não seja o ideal para a cidade, deve trazer dividendos. 

 

A Caixa Econômica, atual dona do imóvel não vem aceitando a oferta feita pelo clube, muito abaixo daquilo que ela considera ser o seu real valor. A mesma Caixa que foi chamada a socorrer o prefeito na época do leilão dos Certificados de Potencial Construtivo da Área Portuária, e que se mostraram um mau negócio, pode acabar tendo contrariadas as suas pretensões de lucro com o terreno. Isso numa transação que sequer tem interesse social ou esteja ligada à habitação, tradicionais investimentos associados à Caixa. 

 

A articulação política para dobrar a Caixa Econômica é poderosa, refletindo a força do Flamengo. Além do prefeito, há autoridades em Brasília envolvidas nesse processo, entre elas Arthur Lira, presidente da Câmara de Deputados, que indicou o atual presidente da Caixa, e o deputado Ciro Nogueira, presidente do partido Progressistas.

 

A localização de um estádio junto a um terminal de transportes, que congrega BRT, VLT e ônibus, é favorável àquele equipamento. Mas é preciso se perguntar se é o melhor uso para um terreno que se valorizou tanto, justamente pelos investimentos públicos em mobilidade. O fato é que um estádio de futebol naquele local é algo a ser questionado. Talvez não seja a melhor opção para a cidade que precisa trazer moradia e serviços para a Área Portuária e São Cristóvão, duas áreas com perda de vitalidade urbana. 

 

Estádios permanecem a maior parte do tempo ociosos, como elefantes brancos, não sendo o melhor uso para um terreno urbano. Um estádio ali fatalmente destruiria os bens de interesse para preservação que restaram no local. E deverá ser um imenso obstáculo à visualização do antigo Lazareto. É importante salientar que o clube deseja comprar também um terreno vizinho, do outro lado da avenida Pedro II, para construir um estacionamento. Assim, a área subtraída a usos mais desejados, como moradia e serviços, seria bem maior. 

 

O Rio tem um dos mais conhecidos estádios do mundo, o Maracanã, infelizmente drasticamente alterado na sua morfologia para a última Copa do Mundo do Brasil. Tem também o Nilton Santos (Engenhão), inaugurado em 2007 para os Jogos Pan-Americanos daquele ano. Mais recentemente, o prefeito enviou à Câmara de Vereadores um estranhíssimo projeto de lei que transfere o potencial construtivo do estádio do Vasco da Gama (como se o estádio já não fosse uma edificação) para outros locais, viabilizando com essa venda a ampliação daquele estádio. 

 

Com essa tendência de que cada clube tenha seu estádio, o Maracanã, que seria aberto a todos os clubes, pode acabar inviabilizado. Mas se o Flamengo, que tem capacidade financeira de erguer seu próprio estádio, quer seguir com esse projeto, que não seja ocupando um terreno com potencial de trazer mais benefícios à cidade. E nem usando o seu poder de fogo para fazer o interesse político ignorar análises técnicas. Em tempo, nos campos e nas quadras, o articulista torce pelo Flamengo.


Artigo publicado em 06 de junho de 2024 no Diário do Rio.


segunda-feira, 3 de junho de 2024

Precisa privatizar?

Projeto proposto para o Jardim de Alah pelo grupo concessionário

O Projeto de Emenda à Lei Orgânica do Município do Rio n° 22/2023, do Vereador Pedro Duarte, do Partido Novo, muito coerentemente com as diretrizes privatistas daquele partido, propõe que seja permitida a concessão ou cessão à iniciativa privada de parques e praças da cidade. Assim, seria levantado um obstáculo legal que veio à baila quando ocorreu a concessão do Jardim de Alah. É bom reparar que o texto do projeto de lei se refere também à cessão, ou seja, a entrega da propriedade, mesmo que por tempo limitado. Há toda uma corrente de pensamento (ou será de interesses?) favorável à concessão de bens públicos à iniciativa privada, como se o poder público fosse incapaz de geri-los. Agora se chegou ao paroxismo de tentar permitir a privatização de todo o litoral do país!  

Em vários estados avançam propostas de entregar a gestão de escolas públicas à iniciativa privada. No Paraná, a proposta é que escolas privadas gerenciem escolas públicas. O evidente conflito de interesses, e o risco de se afundar ainda mais o ensino público para acabar com a concorrência, sequer é lembrado. Em São Paulo, 33 novas escolas serão gerenciadas por 25 anos por parcerias público-privadas. Em Minas Gerais, não só a administração, como a parte pedagógica de três escolas públicas foi entregue a uma entidade privada sem fins lucrativos. 

Nos Estados Unidos, nessa área de educação, dois modelos de privatização se destacam. Um é a concessão de bolsas (vouchers) para que alunos possam pagar as mensalidades das escolas privadas, algo semelhante ao Prouni. No outro, chamado de escolas charters, o poder público financia escolas privadas. No entanto, o relatório Escolas Charters e Vouchers, produzido em parceria pelas organizações Dados para um Debate Democrático na Educação (D3e) e Todos pela Educação, concluiu que, apesar de alguns ganhos individuais, o impacto do modelo na aprendizagem geral foi baixo ou nulo.

 

No Rio há casos já centenários de concessão à iniciativa privada, como o Pão de Açúcar e o bondinho do Corcovado.  Aparentemente, são casos de sucesso, apesar dos preços para acesso àqueles pontos turísticos serem inacessíveis ao carioca de baixa renda. Já a concessão do Jardim de Alah vem gerando diversos atritos com a vizinhança local. Os excessos do projeto, com intervenções arquitetônicas no parque, têm anulado os possíveis benefícios propostos. 

 

A Prefeitura do Rio, já há muitos anos, conta com um sistema de apadrinhamento de áreas públicas, especialmente praças e parques, em que particulares ou empresas adotam essas áreas. Em troca de poder exibir seu nome ou marca, o adotante se responsabiliza por várias tarefas que seriam do poder público. Um caso bem-sucedido é a adoção das dunas vegetadas de Ipanema, onde a vegetação de restinga já havia quase desaparecido e foi replantada. Nesses casos a ingerência particular é menor. 

 

Mais recentemente, houve a concessão do Parque da Catacumba, e não há registros de maiores reclamações. No entanto, a memória é curta e devemos relembrar que até recentemente hospitais e UPAs do estado do Rio de Janeiro estavam cedidos a Organizações Sociais, as OS, que geraram ineficiência e denúncias de corrupção. As unidades estaduais foram totalmente reassumidas pelo Estado em 2020. Na Cidade do Rio de Janeiro, apesar da promessa do prefeito em reduzir as concessões a OS, em função de vários problemas também ocorridos, na verdade elas aumentaram.

 

Outro exemplo malsucedido foi a concessão do Porto Maravilha. O consórcio de empresas que executou a maioria das obras seria responsável pela limpeza, iluminação e outros serviços tradicionalmente públicos. Mas a queda de receitas da Caixa Econômica com a venda dos Certificados de Potencial Construtivo, por falta de demanda para construir, levou ao não pagamento pelos serviços e à sua posterior reestatização. 

 

Não é possível seguir com essa lenda de que a iniciativa privada faz melhor porque não é bem assim. Na maioria das vezes, o poder público, capturado por interesses privados, deixa a administração e a conservação desses bens públicos se deteriorar para então convocar a iniciativa privada salvadora. Esse é o caso do Jardim de Alah. O parque, que já vinha sendo malcuidado, foi usado como canteiro de obras do metrô e como área de guarda de caminhões da Comlurb. Finda a obra, não houve recuperação. Até os pisos dos banheiros usados no canteiro de obras foram deixados no local. Ninguém se responsabilizou pela recuperação da área e a prefeitura encontrou uma ótima justificativa para a concessão à iniciativa privada.

 

Ainda no Rio de Janeiro, a Fundação Parques e Jardins, que outrora cuidou de todas as praças e parques da cidade, foi sendo amputada de suas funções. Atualmente, o cuidado com as praças é com a Comlurb. A poda de árvores urbanas, idem. O cuidado com os parques é com a Secretaria de Meio Ambiente. E os jardineiros da Fundação há muito passaram da idade da aposentadoria, sem novos concursos e contratações à vista. Aí fica parecendo plausível privatizar parques e praças. Mas não deveria ser. 


Artigo publicado em 30 de maio de 2024 no Diário do Rio.