domingo, 9 de junho de 2024

Um estádio no gasômetro

Era o ano de 2000 e o Gasômetro do Rio ainda estava em funcionamento. Mas já se sabia que, com a chegada do gás natural, suas operações seriam sustadas. A Prefeitura do Rio, preocupada com o futuro daquele terreno de 119 mil m², colocou-o como objeto do concurso de projetos "O Modelo Europeu de Cidades", promovido pela cidade de Santiago de Compostela (Espanha). Na época, o Instituto Pereira Passos dizia querer montar um banco de projetos para a região.  

Vinte e seis escritórios apresentaram propostas, tendo sido selecionadas três para a fase final. Entre estas, os projetos da arquiteta baiana Naia Alban e do arquiteto Washington Fajardo. Eles tinham em comum a preservação das antigas torres com tambores de armazenamento do gás, dando-lhes novas funções, como cinema, biblioteca, shopping e habitação. O projeto de Fajardo, numa visão respeitosa com o Patrimônio, ainda preservava os edifícios em tijolos aparentes lá existentes, construídos pelos ingleses no início do século XX.

 

É cada vez mais comum a reutilização de estruturas industriais, reconvertidas para outros usos. O próprio Gasômetro de Porto Alegre foi transformado em espaço cultural. Em diversos países existe a reutilização de tambores de gás e de silos de armazenamento de grãos, para fins habitacionais ou outros. E nas faculdades cariocas de arquitetura, incontáveis projetos foram desenvolvidos para o nosso gasômetro, justamente repensando novos usos para aquelas estruturas que por tanto tempo marcaram a paisagem daquele local.

 

Uma grande oportunidade se perdeu, mais uma. Atualmente as torres já não existem, demolidas não se sabe por que razão. Somente persistem os edifícios em tijolinhos, uma chaminé e uma curiosíssima torre metálica, semelhante a um castelo de água. Vizinho ao terreno, num ponto um pouco acima, se encontra o antigo Hospital Frei Antônio, conhecido como Lazareto, um belo edifício do século XVIII que domina a paisagem, e que um dia já esteve à beira do Mangal de São Diogo, um braço alagado do saco do mesmo nome que chegava até ali.

 

Com o fim das operações da companhia de gás, constatou-se que o terreno tinha seu solo muito contaminado por décadas de contato com produtos químicos. Uma empresa de descontaminação chegou a ser contratada para esse serviço e espera-se que tenha tido sucesso. Parte do terreno do Gasômetro foi desmembrado para dar lugar ao terminal do BRT, o Gentileza, originalmente previsto para as imediações da Central do Brasil.

 

Agora o prefeito se bate para ver realizado o projeto de construção de um estádio do Clube Flamengo. Dizer que o prefeito se bate pelo projeto é bem apropriado, uma vez que ele até se dispõe a desapropriar o terreno para ver o projeto ser concretizado. Muito conveniente num período eleitoral, afinal trata-se da maior torcida do país, e agradar os dirigentes daquele clube, mesmo que o projeto não seja o ideal para a cidade, deve trazer dividendos. 

 

A Caixa Econômica, atual dona do imóvel não vem aceitando a oferta feita pelo clube, muito abaixo daquilo que ela considera ser o seu real valor. A mesma Caixa que foi chamada a socorrer o prefeito na época do leilão dos Certificados de Potencial Construtivo da Área Portuária, e que se mostraram um mau negócio, pode acabar tendo contrariadas as suas pretensões de lucro com o terreno. Isso numa transação que sequer tem interesse social ou esteja ligada à habitação, tradicionais investimentos associados à Caixa. 

 

A articulação política para dobrar a Caixa Econômica é poderosa, refletindo a força do Flamengo. Além do prefeito, há autoridades em Brasília envolvidas nesse processo, entre elas Arthur Lira, presidente da Câmara de Deputados, que indicou o atual presidente da Caixa, e o deputado Ciro Nogueira, presidente do partido Progressistas.

 

A localização de um estádio junto a um terminal de transportes, que congrega BRT, VLT e ônibus, é favorável àquele equipamento. Mas é preciso se perguntar se é o melhor uso para um terreno que se valorizou tanto, justamente pelos investimentos públicos em mobilidade. O fato é que um estádio de futebol naquele local é algo a ser questionado. Talvez não seja a melhor opção para a cidade que precisa trazer moradia e serviços para a Área Portuária e São Cristóvão, duas áreas com perda de vitalidade urbana. 

 

Estádios permanecem a maior parte do tempo ociosos, como elefantes brancos, não sendo o melhor uso para um terreno urbano. Um estádio ali fatalmente destruiria os bens de interesse para preservação que restaram no local. E deverá ser um imenso obstáculo à visualização do antigo Lazareto. É importante salientar que o clube deseja comprar também um terreno vizinho, do outro lado da avenida Pedro II, para construir um estacionamento. Assim, a área subtraída a usos mais desejados, como moradia e serviços, seria bem maior. 

 

O Rio tem um dos mais conhecidos estádios do mundo, o Maracanã, infelizmente drasticamente alterado na sua morfologia para a última Copa do Mundo do Brasil. Tem também o Nilton Santos (Engenhão), inaugurado em 2007 para os Jogos Pan-Americanos daquele ano. Mais recentemente, o prefeito enviou à Câmara de Vereadores um estranhíssimo projeto de lei que transfere o potencial construtivo do estádio do Vasco da Gama (como se o estádio já não fosse uma edificação) para outros locais, viabilizando com essa venda a ampliação daquele estádio. 

 

Com essa tendência de que cada clube tenha seu estádio, o Maracanã, que seria aberto a todos os clubes, pode acabar inviabilizado. Mas se o Flamengo, que tem capacidade financeira de erguer seu próprio estádio, quer seguir com esse projeto, que não seja ocupando um terreno com potencial de trazer mais benefícios à cidade. E nem usando o seu poder de fogo para fazer o interesse político ignorar análises técnicas. Em tempo, nos campos e nas quadras, o articulista torce pelo Flamengo.


Artigo publicado em 06 de junho de 2024 no Diário do Rio.


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