terça-feira, 30 de dezembro de 2025

O homem da tornozeleira

Um pouco sem graça, ele chega oferecendo sua mercadoria: biscoitos, os pacotes mais brilhosos e de conteúdo carregado de gorduras trans, na mais alta escala possível. Na praia, ele é mais um vendedor, desses que compõem o rio que atravessa as cadeiras, barracas e cangas dos banhistas. Seu produto é interessante para acompanhar a cerveja do dono do alto-falante que toca pagode, irritando os locais. 

Mesmo que não se queira comprar os salgados, há algo a reparar no sujeito. Não é a sua figura magra, nem o calção roto. Sequer é a cor de homem comum do povo brasileiro. Na sua canela há, logo reconhecível, uma tornozeleira eletrônica. Como ela foi parar ali, ou melhor, como ele terminou abraçado por esse dispositivo incômodo não se sabe. Mas é cada vez mais comum encontrar nas ruas do Rio de Janeiro vendedores ambulantes, na praia ou nos sinais de trânsito, com suas tornozeleiras eletrônicas. 

A pouca roupa que o calor da cidade exige, ou a carência de vestimenta que as esconda, deixa ver que esses homens estão em dívida com a justiça. Poderiam tentar destruí-las, usando um maçarico à moda bolsonarista. Mas seguem trabalhando, tocando a vida e nos fazendo acostumar com essa nova realidade. 

Indagações surgem sobre a origem de seus atuais problemas. Se teriam praticado assaltos ou traficado. Se, por acaso, teriam agredido mulheres. De que bairros distantes virão e que ressentimentos terão pelo tempo passado trancafiados. Pode-se imaginar quantas negativas em trabalhos formais já não terão ouvido. Recomeçar, em qualquer situação, nunca é fácil. Depois de um ajuste de contas com a justiça, menos ainda. Portar um objeto que denuncia sua situação deve tornar tudo mais difícil. 

A paisagem carioca é diversa e tudo nela cabe. O carioca está acostumado a conviver com o crime e a contravenção. A presença de semipresidiários nas ruas, denunciados por suas tornozeleiras pretas, talvez não fosse vista com tanta naturalidade em outras cidades. Aqui, até onde se vê, não há sinais de que sofram preconceito. Vendem seus produtos a pessoas a quem, talvez no passado, já tenham tentado enganar, ou mesmo assaltar. 

Esse é o Rio de Janeiro, onde a marra e a desinibição, além da resiliência, costumam dar as caras. E onde a aceitação do inusitado parece ser um jeito de ser. Que nossos tornozelados consigam remir suas dívidas. E que todos realizemos nossos sonhos e projetos. Feliz 2026!

Artigo publicado em 29 de dezembro de 2025 no Diário do Rio.


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