sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A fuligem das queimadas sobre nós

 

Saco de São Diogo - Rio de Janeiro século XIX

Com muita razão, Adriana Calcanhoto diz que Cariocas não gostam de dias nublados. O Rio é solar, alegre e inconsequentemente amigo das atividades ao ar livre. Mas nesse penúltimo fim de semana de setembro, do ano covídico, uma nuvem densa e espessa cobriu a cidade. Chegou uma frente fria, pavor de quem gosta de praia. Ela cobriu a cidade de um modo diferente, mais cinza, mais espesso. Trouxe consigo a fumaça das queimadas do Pantanal. Trouxe a fuligem que se formou após as labaredas consumirem as árvores mais altas, as palmeiras, transformando-as em tochas incendidas. Trouxe a fuligem da queima da vegetação rasteira, dos arbustos, do pelo das onças, do couro das antas, das penas das araras. E a dor dos macacos e os gritos das aves em fuga.  

Um ar sujo entrou por nossas narinas, acomodou-se no nosso peito. Respiramos as evidências de um crime federal. Inalamos a nossa impotência ante um sistema que insiste em produzir mais grãos, mais bois, em exportar tudo o que possa às custas da destruição da Floresta Amazônica, do Pantanal, da Caatinga. Respiramos a nossa derrota ante a destruição de vinte por cento do Pantanal por incêndios iniciados pela ganância que domina os costumes no nosso país. Respiramos a nossa contribuição anual para o aquecimento global. E quando a chuva caiu, foi negra, ácida, venenosa. As sujas marcas desse crime correram para as sarjetas, foram dar nos rios, desaguar no mar. Foram empestear os cabelos de Iemanjá.

A Cidade do Rio de Janeiro também já foi um pantanal, na verdade um grande manguezal. O Mangal de São Diogo avançava até o que hoje é a Avenida Presidente Vargas. Na época da ocupação da Cidade Nova, os proprietários de terrenos naquela área eram responsáveis por manterem os canais de dragagem que secaram o lugar. O Centro do Rio era mesmo cheio de áreas alagadas, com diversas áreas pantanosas e lagoas, como a Lagoa de Santo Antônio, na atual Rua 13 de Maio, da Pavuna, nas proximidades do Largo de São Francisco, e do Boqueirão, onde hoje é o Passeio Público. Na Lapa, atrás dos atuais Arcos, se encontravam a Lagoa do Desterro e os alagadiços de Pedro Dias. Não é à toa que quando chove essas áreas logo ficam inundadas.

No atual Largo do Machado havia a Lagoa da Carioca. Em Botafogo, entre as atuais ruas Bambina e Marques de Olinda, havia a Lagoa de Dona Carlota. A Lagoa Rodrigo de Freitas se espalhava por uma área bem maior do que a atual, onde foi mal contida. Na Barra e no Recreio ainda temos várias lagoas, muito poluídas, mostrando que a afluência social é apartada de bons costumes. E nas Vargens, os canais testemunham o trabalho de dragagem outrora realizado naquela área.

Em meio ao cinza escuro que cobriu a cidade, as lagoas já aterradas, os jacarés expulsos dos nossos alagados, as aves e mamíferos que por aqui passavam, toda a fauna e flora perdida para o concreto da cidade choram a destruição do Pantanal. Lamentamos todos por nos sabermos um pouco responsáveis pelo que nos aconteceu no mundo da política. E por estarmos tão distantes, incapacitados de levar um balde sequer da água do mar carioca para apagar o fogo que consome o Brasil.

Artigo publicado no Diário do Rio em 24 de setembro de 2020.


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