sexta-feira, 2 de abril de 2021

Como mudam os espaços públicos cariocas

Passeio Publico - Alfred Martinet - 1847

As praças e parques públicos da cidade são lugares que amamos e que foram criados de acordo com as demandas de uso de cada momento. As suas formas e os seus elementos variaram ao longo do tempo, determinadas por essas demandas. O primeiro parque público da cidade, e do Brasil, o Passeio Público, foi criado no século XVIII, como reflexo de hábitos que haviam surgido na Europa no século anterior. As classes dominantes passeavam ao ar livre em jardins abertos ao público. Projetado pelo Mestre Valentim, como um jardim francês, com eixo de simetria e caminhos retilíneos, tinha canteiros de plantas nativas e exóticas. O parque terminava numa fonte ladeada por pirâmides, e num mirante, onde se apreciava a vista do mar, um prazer estético que mais tarde seria valorizado pelo advento do romantismo.

No século seguinte surgiram novos parques na cidade, como o Campo de Santana e a Quinta da Boa Vista, concebidos por Auguste F. M. Glaziou, com o uso da linguagem do jardim inglês, o que alcançou o próprio Passeio Público, remodelado de acordo com o novo gosto. O repertório de elementos desses parques incluía lagos, pontes, grutas, morrotes, e árvores de portes variados, crescendo livres de podas que definissem, de forma drástica, as suas formas. Nas praças começaram a ser instalados monumentos e chafarizes em ferro fundido, vindos da Fundição Val D’Osne, na França, muitos deles até hoje resistindo à ação do tempo e, principalmente, à ação do vandalismo.

Nas primeiras décadas do século XX vimos surgir, tanto a Praça Paris, com sua rememoração da geometrização dos arbustos, como o Jardim de Alah, com seus caramanchões. Ambos se utilizaram de esculturas artísticas, canteiros geométricos e a presença da água, no chafariz, ou no próprio Canal do Leblon. Ali se podia circular em barcos a remo, que encostavam nas escadinhas providenciadas pelo projeto. São também dessa época os bancos de pranchas de madeira sobre estruturas de ferro fundido, chamados bancos Paris. Com um belo desenho, e funcionalidade até hoje insuperada, ainda resistem em algumas praças.

Nas décadas seguintes foram realizadas praças em profusão na cidade, providas de chafarizes, coretos, jardins floridos, bancos de ripas de madeiras formando um “S”, um clássico desse momento, caramanchões e canteiros, ora geométricos, ora sinuosos. Eram a medida da qualidade de vida dos bairros, ponto de encontro das crianças, mães e babás, lugar de pausa na faina do trabalho, de encontros românticos e, muitas vezes, valorizavam a área como pontos comerciais para o surgimento de cinemas e cafés. Exemplo disso é a Praça Saens Peña, projetada por José da Silva Azevedo Neto, mas já muito alterada.

Mais tarde, os jardins de Burle Marx, e de tantos quantos seguiram sua linha projetual, passaram a ter bancos de concreto, muitas vezes sinuosos, canteiros amebóides, pedras encontradas no terreno, plantas exóticas, e plantas nativas que, de tão desconhecidas, pareciam exóticas. Mas é interessante notar que enquanto lugares emblemáticos, como Parque do Flamengo e a Praça Salgado Filho seguiam essa nova tendência, dezenas de outras praças continuavam a ser feitas na cidade, segundo projetos mais anônimos e cânones mais tradicionais.

O fim do século XX foi pródigo em praças com pergolados, muitas vezes em concreto armado, que, por falta de manutenção, estão quase fadados à demolição. Foi também o período em que muito se investiu em gradeamento de praças, na vã tentativa de se aumentar a segurança e o controle do uso das mesmas. É desse momento a instalação ad nauseam em praças da cidade do conjunto mesinha de jogos e banquinhos de concreto, de pouco inspirado design. Ao longo do tempo demonstraram ser também frágeis. Hoje, após anos de maus cuidados, é fácil encontrar apenas suas bases com as ferragens à mostra ou as lacunas deixadas nos conjuntos.

Em seguida, viu-se o surgimento dos espaços cobertos para os equipamentos de jogos, como na Praça Afonso Pena, na Tijuca, e em centenas de outras praças da cidade. Esse novo grupamento de mesas de jogos e coberturas em estrutura de madeira e telhas cerâmicas formaram o novo arsenal das intervenções nas praças, instalados independentemente de seu projeto original. Em função do aumento da pobreza e de pessoas que passaram a morar nas ruas, em diversos locais já há quem defenda a sua erradicação como forma de impedir que sirvam de abrigos para essas pessoas. Na Praça de Cascadura eles foram sumariamente demolidos pelo Poder Público, o mesmo que os edificou.

Quiosques de flores e de alimentação também passaram a ser parte do repertório das praças, defendidos como equipamentos de ampliação da segurança dos espaços públicos. E pistas de skate, das mais variadas formas, foram incorporadas aos equipamentos existentes nas praças, assim como quadras de futebol e basquete. Em algumas praças mais bem aquinhoadas, essas quadras são cobertas e até contam com iluminação para jogos noturnos. Quadras de tênis ainda permanecem exceções, encontradas, por exemplo, no Parque do Flamengo. Já os parquinhos, inicialmente dotados do singelo quarteto gangorra, balanço, escorrega, trepa-trepa, em algumas praças ganharam brinquedos mais sofisticados, como pontes pênseis, cordas bambas e túneis.

O paisagista Fernando Chacel trouxe questões importantes para se pensar nos projetos dos espaços públicos, como a recuperação da flora local, que ele denominou de ecogênese. O Bosque da Barra, de sua autoria, assim como a Praça Mozart Firmeza, no Recreio dos Bandeirantes, são exemplos dessa linha de trabalho. No entanto, esse modelo não foi capaz de se firmar em larga escala. Nos inúmeros condomínios da Barra há excelentes praças, bem servidas por equipamentos, mas o jeitão ostentação e as restrições indiretas, como cancelas e guaritas, não contribuem para um amplo uso desses espaços.  

Um equipamento de altíssima demanda nos últimos tempos é o chamado “parcão”, espaço exclusivo para cães circularem sem coleiras. Em 2015, pesquisa do IBGE indicou que o Estado do Rio de Janeiro teria 2,117 milhões de domicílios com cães, o que representaria 35% do total. Na capital esse índice deve ser bem maior. É possível arriscar que há mais militância pela construção de espaços para cães nas praças, do que para a construção de parquinhos para as crianças, os quais demandam áreas até menores.  

Se lá no início da construção de espaços públicos apenas os hábitos das classes dominantes eram contemplados, pode se dizer que, com o tempo, ocorreu uma democratização desses espaços. Assim, os jogos das turmas de idosos, as quadras e as pistas de skates dos mais jovens e o churrasco e a bebida dos boêmios passaram a ser também contemplados. Mas o design da exclusão cobrou seu preço. Bancos de praças receberam divisórias para impedir que as pessoas se deitem, e chafarizes andaram sendo desligados para se evitar o banho dos moradores de rua.

Duas perspectivas já existentes poderiam nortear os novos projetos de espaços públicos da cidade. Uma delas seria o lazer ativo, existente no Parque de Madureira, em que é permitido banhar-se na cascata. A outra é a noção de que espaços públicos podem e devem colaborar para a prestação de serviços ambientais à cidade. Assim, mais áreas permeáveis, florestas de bolso, jardins de chuva e espaços com menos necessidade de cuidados paisagísticos, ou seja, soluções baseadas na natureza, seriam elementos a serem incorporados ao novo repertório de nossos parques e praças. Mas como vimos, esses elementos só serão incorporados aos espaços públicos caso se tornem demandas da sociedade.

artigo publicado no Diário do Rio em 01/04/2021

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