Durante muitas décadas, a chama da dança no Brasil foi levada pelas mulheres. Mulheres maravilhosas que superaram diversas dificuldades. Numa sociedade conservadora, havia o consenso de que deveriam se dedicar somente ao lar. Além das dificuldades financeiras normais para abrir seus estúdios, o fato de serem mulheres à frente dessas iniciativas agravava a situação. Houve mesmo um tempo em que a sociedade atrasada duvidava da moral das bailarinas.
Para muitas delas, havia também dificuldades linguísticas, por terem vindo de outros países. A saudosa Dona Eugênia Feodorova, Maria Olenewa, Nina Verchinina, Slava Golenko, Graciela Figueroa, que retornou para o Uruguai deixando saudades, Dona Tatiana Leskova, que faz 102 anos com plena capacidade intelectual, e outras, são exemplos dessas batalhadoras. Vieram de longe para semear num solo ainda pouco trabalhado no Rio de Janeiro.
Seus esforços deram frutos. Lourdes Bastos, Marli Tavares, Regina Sauer, Regina Miranda, Lia Rodrigues, Márcia Milhazes, Sônia Destri, são brasileiras que criaram suas companhias de dança no Rio e contribuíram para essa forte tradição feminina na dança brasileira.
Não que não tenha havido homens nesse percurso, alguns também de outras terras, como Zdenek Hampl e Lennie Dale. E brasileiros, como Aldo Lotufo, Dennis Gray, Edmundo Carijó, Ceme Jambay, e Klauss Vianna. E aí chega-se à gigante Angel Vianna, cuja perda recente o mundo da dança brasileira chora.
Angel saiu de Belo Horizonte, em busca de horizontes mais amplos em Salvador, e depois, no Rio de Janeiro. Aqui deu aulas de ballet, a sua formação original. Mas logo iniciou com Klauss, seu companheiro nessa aventura, a busca por novas linguagens. Trabalhou com atores e, quando iniciou o trabalho que chamou de expressão corporal, rompeu uma barreira importante, atraindo pessoas de fora da dança. Profissionais liberais de diversas formações frequentaram suas aulas, descobrindo seus corpos, antes aprisionados por rotinas de trabalho e censuras várias.
Angel tinha grandes ambições na sua ação de formação. Criou uma prestigiada escola técnica, que evoluiu para o estabelecimento de uma faculdade e uma pós-graduação em dança. Até então, instituições assim só existiam na esfera pública, e sem o claro direcionamento para uma linguagem contemporânea. Não só a dança lhe interessava, mas também os processos terapêuticos do corpo e pelo corpo.
A atuação de Angel foi fundamental para a formação de uma parcela expressiva dos profissionais da dança na cidade, que trabalham com linguagens além do ballet. Sua generosidade atraiu para seus centros de formação pessoas talentosas, em busca de acolhimento e incentivo. Muito do que se produz em dança no Rio de Janeiro tem origem no inestimável trabalho da mestra.
Angel Vianna foi ousada também ao entrar em cena já em idade avançada, permitindo que as plateias apreciassem a beleza e delicadeza de um corpo marcado pelo tempo, com suas fortalezas e fragilidades. Vendo sua atuação em perspectiva, percebe-se que nela, essa marca feminina que está na base da dança brasileira transbordou em ondas amorosas, que tocaram tantas pessoas, e fertilizaram a dança carioca.
Artigo publicado em 05 de dezembro de 2024 no Diário do Rio.
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