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Gaza 2025 |
Em verdade todas as minhas aves e criaturas aladas voaram para longe
"Aí de mim! Por
minha cidade " - eu direi.
Minhas filhas e meus
filhos foram levados embora
"Ai de mim! Por meus
homens" - direi.
"Oh minha cidade que
não mais existe, minha [cidade] atacada sem causa,
Oh minha [cidade] atacada e destruída!"
O lamento da deusa Ningal é pela destruição de Ur, na
antiga Mesopotâmia. Mas voltou a ser atual. Mais de dois mil anos antes de
Cristo, Ur foi sitiada e destruída. Os elamitas, juntamente com aliados entre
as tribos iranianas, cercaram Ur, provocando a fome. Em desespero, seus
defensores abriram as portas da cidade para os invasores, que os assassinaram e
saquearam casas e templos.
O surgimento da civilização urbana foi acompanhado
pelo aumento vertiginoso da selvageria entre os humanos. Desde tempos
remotos, quando começaram a existir as cidades, passou a predominar o
extermínio e a destruição em massa de comunidades inteiras. Segundo o
historiador Lewis Mumford, o que antes tinha sido um sacrifício mágico para
assegurar a fertilidade e as boas colheitas "foi transformado na exibição
do poder que tinha uma comunidade, sob seu deus irado e seu rei-sacerdote, de
controlar, dominar ou apagar totalmente outra comunidade."
Na guerra de Troia, verdadeira ou mitológica, como
narrada por Homero em A Ilíada, após dez anos de cerco e o estratagema do
cavalo, a cidade teria sido conquistada pelos aqueus. Esses teriam massacrado
os troianos, tomado mulheres e crianças como escravos, e dessacralizado seus
templos.
Senaqueribe, rei do Império Neoassírio, assim
descreveu a aniquilação da Babilônia: "A cidade e [suas] casas, desde seus
alicerces até o alto, eu destruí, devastei, queimei com fogo; o muro e a
muralha exterior, templos e deuses, torres de templos de tijolos de terra,
tantas quantas existiam, arrasei..."
Delenda est Carthago,
ou Cartago deve ser destruída, foi uma frase popularizada na República Romana.
Ela se referia à necessidade de eliminar a cidade que ousava desafiar Roma. A
cidade foi destruída em 146 a.C. Foi arrasada até os seus alicerces e seu chão
foi salgado para que nada mais ali crescesse.
Na primavera do ano 70 d.C. os exércitos romanos
cercaram Jerusalém. O cerco produziu fome e doenças. Após romper as defesas da
cidade, os romanos produziram a morte, a execução e a escravização de dezenas
de milhares de habitantes de Jerusalém. A cidade foi arrasada, assim como o
Segundo Templo, então o principal local de adoração e de sacrifício ritual dos
judeus. Na tradição cristã, Jesus teria lamentado essa futura destruição da
cidade. Ah! Jerusalém!
Centenas de anos se seguiram, repletos de destruições
de impérios e genocídios na América e na África. Em 1942, como retaliação pela
morte do governador alemão da Boêmia e da Morávia por combatentes tchecos, o
exército alemão atacou a cidade de Lídice. Todos os homens foram fuzilados, as
mulheres e crianças foram enviadas para campos de concentração e as edificações
foram destruídas.
Ainda na Segunda Mundial, em 1945, Tóquio foi
intensamente atacada por bombas incendiárias, matando, segundo dados da cidade,
mais de 124 mil pessoas, número maior do que as vítimas em Hiroshima. As casas,
construídas com materiais leves, serviram de combustível para o fogo. Mais de
50% da cidade ficou destruída. Seguiram- se as bombas atômicas sobre Hiroshima
e Nagasaki. Em todas, os relatos dos civis que sobreviveram mencionam corpos em
chamas.
Desde o século XIX, já havia na Europa preocupações
com os graves efeitos dos conflitos armados sobre as populações
civis. Após os horrores das duas guerras mundiais, cresceu a consciência
de que esses terríveis acontecimentos não deveriam se repetir. Diversos países,
inclusive o Brasil, deram o nome de Lídice a alguma de suas cidades para que
ela nunca deixasse de existir. A proteção da população civil e de bens civis
durante conflitos armados passou a ser prevista no chamado Direito Internacional
Humanitário (DIH), estabelecido pelas Convenções de Haia e de Genebra. A
Convenção de Genebra (1949) definiu direitos dos militares fora de combate e
dos civis.
Acreditava-se que essa legislação sobre crimes de
guerra seria suficiente para prevenir o retorno da barbárie. Em 2025, após dois
anos de intensa atuação do exército israelense em Gaza, as cidades desse
território estão arrasadas. Acredita-se que mais de 65 mil palestinos tenham
sido mortos, entre eles uma grande quantidade de mulheres e crianças. Segundo a
Unicef, 64 mil crianças morreram ou foram feridas. Não foram poupadas as casas,
as escolas, os templos e os hospitais. Em termos de saúde e educação, Gaza
retrocedeu algumas décadas. Mas, com Gaza, a humanidade retrocedeu muito
mais, de forma insuportável.
Artiogo publicado no Diário do Rio em 16 de outubro de 2025.
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