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Hospital da Gamboa - Rio de janeiro |
Uma cidade é onde se mora e se trabalha, onde se diverte e se ama. É onde se trava a luta pela subsistência, pelo sustento ou pelo sucesso. É o lugar onde moram pessoas queridas, que até podem ser família. É a coleção dos lugares preferidos e também, muito atual, dos lugares temidos. Pode ser a sua nova morada ou pode ser aquele lugar para onde sempre se volta após as viagens. Para quem nela vive há muito tempo, uma cidade pode ser também uma coleção de pontos de memória.
Mesmo tendo vivido em outras cidades, o Rio é o cenário da maior parte da minha vida. Alguns desses lugares deixaram de existir, deixando a memória de um acontecimento vagando como alma penada, sem ter onde pousar. Outros se transformaram tanto, que se tornaram irreconhecíveis. Mas há muitos que ainda estão aí na minha querida cidade.
Na infância, me lembro de ter ido para o Hospital da Gamboa, enganado que a retirada das amígdalas seria indolor e recompensada com um sorvete. O hospital, que ainda existe, fica numa pequena elevação e lá cheguei numa manhã fria trazendo de casa um lençol. Estranha recomendação. Logo descobri que ele seria usado para me enrolar, prendendo meus braços para que não interferisse na carnificina que estava para se desenrolar. Sentado com os braços presos, restavam os pés, ainda capazes de chutar as canelas do médico, em protesto por aquela invasão da minha garganta. O sorvete não compensou a angústia daquele terrível momento.
Me lembro do bonde que subia para o Alto da Boa Vista. Numa tarde de domingo, a cidade dos edifícios ficava para trás e uma floresta ia se tornando mais densa à medida em que se avançava estrada acima. Esse bonde, e todos os outros que usei na infância, já não existe. Restou o de Santa Teresa que só conheci já adulto.
Me lembro de uma floresta em pleno coração da Tijuca, lugar dos passeios dos alunos do Instituto São Vicente de Paulo. Lá no alto, no meio das árvores, havia a maior imagem de Nossa Senhora que podia existir. A floresta deu lugar a um hospital e a imagem foi parar na torre da basílica dedicada à santa, erguendo-se numa laje seca sobre o bairro, abaixo de seu filho lá na montanha mais alta.
Me lembro do colégio de freiras da rua Pereira da Silva, onde fui deixado durante um feriado. Do lado de dentro das grades, vi passar todo tipo de gente fantasiada, provocando e fazendo graça. E aprendi que aquilo era o Carnaval. O colégio é hoje um condomínio residencial, mas as grades ainda estão por lá.
Me lembro do cheiro de maresia de Copacabana, algo que era presente a cada ida ao bairro. Me lembro das filas nos supermercados para comprar os produtos que estavam em falta. Somente alguns quilos de açúcar ou de feijão por pessoa. As crianças eram colocadas na fila para aumentar a quantidade de unidades que cada família levaria para casa. Me lembro também dos cortes de energia. Aqueles racionamentos ficaram no passado e a maresia foi empurrada junto com o mar para mais longe.
Me lembro da orla bucólica entre a Freguesia e o Cocotá, na Ilha do Governador, caminho que percorria quando era assolado pela vontade juvenil de me isolar. Me lembro do longo trajeto de ônibus entre a Ilha e o Colégio Pedro II de São Cristóvão, passando por muitos bairros da Zona Norte, num trajeto irracional, mas certamente mais lucrativo para a empresa. Me lembro das horas roubadas ao colégio e passadas com colegas na Quinta da Boa Vista. Tudo isso, de certa forma, ainda está por aí.
A cidade se transformou muito. Muito mais moradores, muito mais carros e edifícios, e muito menos cuidado com a paisagem e o passado. Todos perdem um pouco das suas lembranças. O trabalho de quem lida com o Patrimônio tem sido a difícil tentativa de preservar elementos da memória coletiva dos habitantes das cidades. Uma tarefa tão pouco compreendida por empresários e governantes.
Artigo publicado em 26 de setembro de 2025 no Diário do Rio.
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